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quinta-feira, 2 de abril de 2020

OITO DIAS - CONTO DE CONFINAMENTO


Acordei sobressaltado. A minha respiração era ofegante e o coração estava disparado. Aspirei profundamente todo o ar que eu pude, tentando equilibrar a pulsação e consegui me acalmar. Eu me encontrava numa espécie de colchão de molas, deitado de costas. Percebi e acompanhei o lento girar do ventilador do teto por alguns minutos, até que desci o foco pelas paredes brancas do recinto, num enquadramento de lente fotográfica que alternava o zoom pra perto ou pra longe, como se eu esfregasse os olhos e as imagens se desembaralhassem paulatinamente. Ao meu lado direito havia um guarda roupa de portas escancaradas, deixando nítido o seu interior totalmente vazio que exalava odor de bolor. Do lado esquerdo uma janela fechada colaborava para tornar o ambiente escuro, um breu pesado e silencioso. Tentei me movimentar, mas o meu corpo não respondeu instantaneamente a ordem enviada pelo cérebro. Só após grande esforço consegui levantar a mão direita para tocar o rosto e me apavorei. Eu não tinha mãos, os meus braços mais pareciam ganchos e se mostravam peludos e cascudos como os de um inseto. Não contava exatamente com um corpo e sim com uma espécie de exoesqueleto revestido de uma crosta endurecida. Não era possível, provavelmente eu estava em meio a um pesadelo onde eu seria o personagem de um livro de Kafka. Senti um forte calor. Eu não suava, mas sentia jorrar de mim uma gosma nauseabunda. Antes de passar do pavor para o pânico, ouvi o ranger de uma porta que se abria. Subitamente um humano puxou de forma violenta o lençol do catre onde eu estirara a minha tanta podridão, provocando o espatifar da minha carcaça ao chão. Deu tempo apenas de perceber uma bota suja e cruel vindo em minha direção de forma decidida. Eu me senti ser esmagado com força descomunal, impiedosamente e fui me transformando numa pasta disforme e grudenta, até que tudo escureceu.

Acordei sobressaltado. A minha mente se mostrava entorpecida e confusa, o meu corpo parecia paralisado. Eu não tinha movimentos além da cabeça e dos olhos esbugalhados que piscavam freneticamente, em absoluto e involuntário descontrole. Quis gritar, mas como uma mordaça cobria a minha boca, eu só grunhi tal qual um porco sendo abatido sem dó. Que situação terrível ter o cérebro em pleno funcionamento e o corpo não responder as ordens. Entrei em desespero. Estaria eu tetraplégico por conta de algum acidente, que ainda por cima teria afetado a minha memória? Algumas lágrimas frias e ardidas brotaram em meus olhos. Sem saber o que acontecia ou a minha localização, resolvi estudar a situação. Afinal, as únicas coisas com as quais eu podia contar naquele instante eram o raciocínio, a capacidade de observação e a vontade de reagir. E foi assim que eu me descobri em cima de uma maca, vestido em uma camisa de força, com as pernas amarradas e os pés algemados nas grades laterais. Não fazia sentido, mas pelo menos eu já conseguira avançar no possível entendimento do que estava se sucedendo. Mas o que eu fazia ali, preso daquela forma como se fosse um louco, um Hannibal Lecter sanguinário de periculosidade letal? Subitamente dois homens de aventais brancos entraram na sala com semblantes inexpressivos. Um ligou uma parafernália esquisita, apertou teclas e girou botões, enquanto o segundo colocava placas em minha cabeça e as prendia nela. Aí o primeiro deu o sinal para o segundo e de repente, sem anestesia ou qualquer aviso, comecei a tomar choques elétricos violentíssimos que me estremeceram inteiro, fazendo os meus cabelos eriçarem e os meus olhos vidrarem. Agora sim fiquei com a face igual a de um doido de pedra. Os homens repetiram várias vezes a sessão de choques, então eu nem os reconhecia mais. Na verdade eu já me acostumara e quase os apreciava, quando a minha mente foi se apagando, se apagando, até que tudo escureceu.

Acordei sobressaltado. Eu me senti estranho, mas estava bem aquecido e parecia protegido, ligado a um cordão umbilical que me alimentava constantemente, apesar de que a dona daquele invólucro mantinha uma dieta de comidas gordurosas ou cruas, repletas de bactérias e toxinas, e bebia muito mais álcool do que água. Isso fora as drogas que ela consumia avidamente e que penetravam o seu corpo de todas as formas, chegando-me instantaneamente para comprometer todo o meu desenvolvimento. Quando dei por mim eu era um feto de alguns meses, no interior de uma crápula que me levara a uma clínica de abortos. Dizem que um feto não sente dor, mas falam isso porque não se lembram. Além da terrível sensação física de desconforto causado pelos gases pútridos que habitavam aquela barriga, eu era afetado pelos venenos que circulavam no fluxo sangüíneo da pessoa que jamais eu chamaria de mãe. Tinha hora que me dava uma fissura tamanha, que eu saia lambendo placenta e parede uterina ansiosamente, numa tentativa infrutífera e insaciável de buscar sabores mais agradáveis, mas era tudo amargo e ácido. O mau cheiro daquele espaço apertado se fazia repulsivo. A situação me acometia de uma angústia atroz, porque eu conseguia ouvir vozes conversando lá fora e também o som estridente de instrumentos cortantes sendo preparados para o dilaceramento do meu pequenino corpo e o desligamento total da minha alma. Eu nem tinha tido tempo de saber se viveria depois para sempre em algum paraíso, ou viajaria para a eternidade de um inferno pior do que aquele que eu conhecera neste pouco tempo de existência. O filosofar foi interrompido bruscamente pelo início do procedimento do meu assassinato e uma contagem decrescente de dez para zero. Lá pelo número sete o meu cérebro em formação começou a desfalecer e se alegrou, porque pelo menos a anestesia não me permitiria sofrer e assim eu fechei os meus olhos e nem chorei, até que tudo escureceu.

Acordei sobressaltado. Eu senti muito medo, uma paura daquelas de dar diarréia e mijaneira simultâneas, tremedeira e suor exacerbado. Eu jazia em uma poça de sangue no chão sujo e gelado de um cubículo sem luz, mas estava vivo, apesar de respirar com imensa dificuldade. Tinha costelas quebradas, dentes partidos, hematomas por todo o corpo e os pulmões comprometidos. Abri levemente os olhos intumescidos e roxos para divisar que eu estava encarcerado num porão úmido, de paredes enegrecidas, bolorentas e caindo aos pedaços. Como eu havia parado ali eu não lembrava, só sabia que eu havia sido espancado por muita gente ruim, que gargalhava a cada gemido de dor que eu dava. Eu implorava para que parassem o suplício, mas o ódio e a agressividade deles só aumentavam. Levei chutes na cara, pauladas, socos fortíssimos. Fui colocado nu e puxado pelos cabelos como um boneco de pano. Então eles me penduraram por uma corrente que vinha desde o teto e fiquei abandonado assim, até que a corrente se partiu e eu me esborrachei no cimento esvaindo-me no plasma que era lambido por ratos enormes, que também mordiscavam as minhas pernas. Era só isso que a minha memória alcançava. Não sei por quanto tempo fiquei assim, talvez um dia ou três, até que os canalhas voltaram e me ergueram gargalhando novamente, dando tapas em meu rosto e me jogando água fria para que eu permanecesse acordado e lúcido. Levaram-me arrastado, algemado e com os pés amarrados para fora da cela. Eu fui me batendo nas paredes do corredor apertado e nos degraus de uma escadaria que nunca acabava, até que uma porta metálica se abriu e a luz do sol praticamente cegou os meus olhos. Quando consegui enxergar algo novamente eu estava de costas para um muro, em frente a um pelotão de fuzilamento. Todo aquele temor que eu sentia de repente passou e eu sorri, olhando para o céu em agradecimento. Eu só queria as balas perfurando o meu corpo, deixando-o como uma grande peneira de garimpeiro. Eu não consegui segurar a gargalhada. Desta vez era eu quem a dava, o que irritou sobremaneira os meus algozes. Um deles gritou “fogo” para os outros, que engatilharam os seus fuzis e atiraram. A saraivada de projéteis atingiu meu corpo como gotas de água abençoada. Eu continuei gargalhando histericamente, enquanto a maldade se descortinava vagarosamente defronte aos meus olhos, até que tudo escureceu.     

Acordei sobressaltado. Mãos rudes e grosseiras de quatro homens me seguravam e exploravam todo o meu corpo. Um gigantesco e pesado ser estava sobre mim, enlaçando o meu pescoço e fazendo um movimento tão rápido e violento por detrás que me rasgava inteiro. Descobri que estava sendo estuprado por pessoas alucinadas e anormais. A dor era lancinante. O cara que me violentava tinha um tamanho desproporcional em todos os sentidos. Pelos grosseiros cobriam-no integralmente, o que fazia que se assemelhasse a um primata, não só pela atitude, mas também pela aparência. Eu me sentia sangrar e arder e o sofrimento só aumentava. Se eu tentasse reagir, o que era praticamente impossível, a coisa ficava pior. O animalesco que me penetrava suava em bicas e exalando o seu bafo fétido me lambia a nuca, me chamando de puta, vagabunda, safada, afirmando que eu seria a “mulherzinha dele para sempre”. Eu já estava rogando que o descerebrado chegasse logo ao ápice e despejasse no meu interior todas as suas doenças, porque os outros que me seguravam tentavam me excitar manipulando o meu membro, como se fosse viável ter qualquer sentimento ali que não fosse aflição, desespero e nojo. Não obtendo sucesso, passaram em minha face e lábios os enormes pênis enrijecidos e molhados de esperma e enfiaram-nos em minha boca até a garganta, rasgando os cantos que sangraram tanto quanto o ânus alargado pela broca colossal do ogro. Aí o monstrengo tremelicou, relinchou feito um cavalo e soltou uma cascata de gozo que transbordou ao chão. Era incrível, mas intimamente eu me senti aliviado, porque quem sabe assim saciado aquela tortura acabasse. A esperança foi logo desmentida, porque um dos que haviam enfiado os paus na minha boca, trocou de lugar com a besta e tudo recomeçou. E assim foi por um tempo incalculável, com os aberrantes se revezando dentro e fora de mim, naquela sanha cruel, mórbida e sádica. Felizmente, até talvez por um ato de auto defesa final, o meu corpo repentinamente se entregou e deixei de ter qualquer sensibilidade. Não importava mais a minha extinta masculinidade profanada. A minha mente começou a agonizar gradativamente, me livrando dos futuros traumas, moléstias e vergonhas, até que tudo escureceu. 

Acordei sobressaltado. Olhei pros lados e pra cima e fiquei horrorizado porque eu havia dormitado dentro de um caixão de defunto. Quase sufocando eu vi por frestas na madeira decrépita e apodrecida, que o esquife se depositava em uma vala, cercado de lama e pedras. Mesmo contido naquele espaço comprimido, eu gritei exasperado como nunca gritara antes, batendo na tampa deteriorada que me lacrava. O silêncio ensurdecia e o escuro assustava. Ainda existia ar naquele compartimento exíguo. Consegui distinguir que o meu melhor terno, um Armani falsificado, me vestia e que em meus pés haviam calçado sapatos nobres, pretos e lustrosos. Não tinha a companhia de flores. Pelo menos quem cuidara do meu sepultamento respeitara os meus sentimentos pregressos. Alérgico a perfumes de rosas ou outras plantas, quando em vida eu espirrava sem parar na presença delas e eu não sabia antes o que aconteceria quando morresse, fato que eu descobriria ironicamente agora, ali no fundo daquela cova imunda e desrespeitosa do meu sepulcro. Mas será que ninguém percebera o equívoco? Qual o médico desgraçado que houvera assinado o meu atestado de óbito? Ninguém auscultara devidamente o meu coração, verificado o meu pulso e as atividades intensas do meu cérebro? Nem pressa havia para provocar o meu desenlace, uma vez que sendo paupérrimo nada além de dívidas eu deixaria como herança. Soltei a voz poderosamente outra vez, apesar do ar estar ficando mais rarefeito, para que me descobrissem vivo e me tirassem imediatamente dali. Que me chamassem de Lázaro, o ressuscitado, ou me considerassem um Zumbi da série The Walking Dead, mas que me salvassem. Isso não ocorreu e eu ouvi as rezas e bênçãos de um padre, verdadeiro absurdo para um ateu, o que aumentou a minha angústia, mas se precisasse implorar a Deus ou fazer promessas pro Demo pra me safar do fenecimento que estavam provocando eu concordaria. Entretanto, ninguém me ouvia na Terra, no Céu ou no Inferno. Falando em terra as orações cessaram e o barro começou a ser derrubado sobre o ataúde, tumulando todas as minhas esperanças. Uma lágrima sentida caiu do meu olho direito, enquanto a respiração foi diminuindo, diminuindo, até que tudo escureceu.

Acordei sobressaltado. Porém, logo reconheci o meu quarto com suíte, a cama King Size dotada de colchão d’água onde eu estendia a minha coluna de atleta, os travesseiros de penas de gansos onde a minha criativa cabeça descansava e o edredom volumoso e perfumado que tinha o privilégio de me aquecer todas as noites. Então eu me acalmei, já pensando em levantar. Eu sempre despertava no pique total, alegre, saltitante, com vontade de comer, produzir, transar, trabalhar, me divertir, sair e explorar o mundo, levando a todas as pessoas amigas ou desconhecidas a minha incomparável e contagiante energia. Devido ao silêncio na casa e fora dela imaginei que era muito cedo, mas já passava das nove horas de um sábado. Desci as escadas e liguei a TV da sala, mas descobri que não havia eletricidade. Então fui direto à cozinha preparar o breakfast. Eu estava com vontade de um café da manhã do estilo que a gente vê em filmes americanos. Peguei três ovos, várias fatias de bacon e fritei tudo naquele tipo de frigideira em que nada gruda. Em outra panela rasa eu preparei panquecas, quando subitamente acabou o gás. Que dia esquisito começava, mas nada abalaria a minha fome. Para acompanhar o lanche eu cortei e bati manualmente frutas, leite e cereais diversos. Sentei para forrar o estômago, peguei o celular e estranhei. Não havia sinal. Por isso ninguém havia me chamado no whatsapp ou enviado um email. Apelei para o lap top que contava com a bateria carregada, tentando uma rápida navegação pela internet, só que apareceu uma mensagem dizendo que não havia conexão. Voltei ao quarto contrariado, preparado para o saudável banho matinal, esquecido que sem luz a ducha estaria bem gelada, mas isso não seria o problema. Chato foi bem na hora em que eu estava todo ensaboado a água parar de jorrar. Não podia ser verdade, parecia gozação. Será que eu não pagara as contas todas? Que nada, eu era milionário e os pagamentos ficavam em débito automático... Tirei o sabão e me enxuguei com a toalha, coloquei o abrigo esportivo e fui às ruas correr, para a devida manutenção do meu invejado e musculoso corpo. Eu tinha orgulho de exibi-lo nas academias e baladas. Em um quilômetro já percebi que carros não transitavam e nenhuma pessoa circulava. Realmente era um dia singular. O bairro parecia abandonado, todo o comércio estava com as portas cerradas. Fui trotando pelo meio do vazio da rua e passei por um desses relógios urbanos. A mensagem me chamou a atenção porque dizia: “NÃO SAIA DE CASA. CUIDADO COM O CORONAVÍRUS!” E um textinho curto alertava para uma pandemia que havia acometido o mundo inteiro. Mais adiante, um cartaz afixado num muro explicava mais detalhadamente que a tal doença havia dizimado populações. Mas tudo isso enquanto eu dormia? Como eu não havia percebido nada? Eu teria ficado cego e surdo por um período? Então as pessoas deviam estar trancadas em seus lares, obedientes e preocupadas, esperando a tal virose passar. Corri aceleradamente de volta pra casa pra falar com os vizinhos. Toquei as campainhas de cinco ou seis residências, mas não havia ninguém. O pânico bateu de vez. Só existia eu num mundo sem gente, água, eletricidade, gás, internet ou qualquer forma de comunicação. Mas a essa altura tanto fazia a comunicação, se não existia ninguém pra interagir ou pra quem me exibir. Mesmo rico, fatalmente os meus mantimentos acabariam em breve, pois eu não era de fazer grandes compras e estoques. Relaxei, entrei em casa, peguei a última caixa de Heinekens, cujas latinhas nem geladas estavam, coloquei uma cadeira na calçada e fiquei tocando violão, bebendo e olhando para o nada. Vez em quando eu parava e pensava que poderia ter acontecido outras coisas péssimas ao invés disso, como por exemplo, acordar sendo o Gregor Samsa ou internado como um louco tomando fortíssimos choques elétricos. Já imaginou despertar e se descobrir um feto prestes a ser abortado ou frente a um pelotão de fuzilamento? Talvez fosse pior ainda, ao amanhecer, se perceber sendo enterrado vivo ou estuprado incessantemente por vários mastodontes. O mundo era repleto de possibilidades horríveis e a situação que esse tal de corona tinha provocado talvez houvesse superado tudo, pois me faria morrer solitário e à míngua, num padecimento demorado, sinistro e lúgubre, com toda a minha grana que não serviria pra nada, o corpo musculoso que definharia até o esqueleto, o orgulho que se transformaria na humildade dos miseráveis e a alegria por viver que nunca mais encontraria um sorriso para se expressar. No início da madrugada, cansado, triste e abatido eu me deitei. Pensei em orar, mas como não sabia, apenas mantive no coração enfraquecido um leve sentimento de esperança de que amanhã seria melhor. Aos poucos fui adormecendo e me desligando da consciência, até que tudo escureceu.

No dia seguinte acordei sobressaltado...

FIM