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sábado, 14 de dezembro de 2019

O LIVRO DOS CONTOS

O FILME QUE           PASSOU NA MINHA CABEÇA
                          NÃO


SUMÁRIO
1    A BAILARINA, O BARMAN E O PIANISTA
2    O HOMEM QUE IA MORRER DEPOIS DE AMANHÃ
3    O MENDIGO
4    OS PÉS DE MARIA
5    O NEGÃO
6    TADEU E MARIETA
7    MALDOSO
8    ANTIDENTISTA
9    A CASA!
10  FOTOGRAMAS

A BAILARINA, O BARMAN E O PIANISTA

Balcão de um bar desconhecido, excelente para apoiar cotovelos, copos e pensamentos. Bebo tranquilamente a minha tensão. O barman não me conhece, mas já sabe que não sou conversa. Ele é mais velho do que este antigo balcão. Como naquela antiga lenda, acho que o bar foi construído e certamente ele já morava ali, era careca, corcunda, enrugado e com as mãos calejadas porque já trabalhara na roça mais cedo ainda do que jovem. Mas que rosto simpático e confiável esse senhor carcomido pelo tempo apresenta. Tem um sorriso daqueles que não se abre pra qualquer piada, mas somente para uma situação de valor. Uma gargalhada, então, só por causos realmente inusitados. Ao longo desta noite foram oito sorrisos e uma só gargalhada até agora. Apesar disso ele não tem um ar sisudo e na verdade revela um raro bom humor.

No fundo do bar, ao lado esquerdo do balcão, o pianista toca jazz, bossa e ritmos latinos. Ele aparenta ser argentino ou uruguaio ou cubano, sei lá. Normalmente gente desses povos e eu não nos sintonizamos em ambientes musicais, não sei bem por que ou sei bem por que. Meus ouvidos o escutaram cochichar ao garçom que me conhece, mas eu não me lembro de tê-lo esquecido. Sendo respeitado como músico, ele me olha de soslaio agradecido considerando-me como um cliente diferenciado, pois cada vez que eu gosto de uma música estalo discretamente os dedos ao invés de bater ruidosas palmas. Aí ele faz uma mesura ridícula e desnecessária com a cabeça. Talvez porque só eu, entre os clientes do bar, esteja apreciando o som.  Na verdade eu e aquela linda morena sentada a três banquinhos do meu.

Ela também ouve a música imersa em total silêncio. Uma noite de nenhum trabalho para o barman, que não tem que escutar as mesmas ladainhas bêbadas de sempre. Essa mulher está triste, impressionantemente triste e a cada gole que dá no whisky a sua melancolia parece mais aquecer. Ela me fitou algumas vezes, apesar de que é uma mulher interessante demais para me notar. Os seus gestos são muito delicados, tem uma graça toda especial. Alta madrugada, quando se levantou para ir ao toalete, passou bem perto de mim mostrando um corpo deslumbrante. Tem uma tatuagem indefinível no final das costas. Eu a vi porque a blusa dela deu uma levantadinha e assim ficou até ser ajeitada no meio do caminho. Se eu fosse arriscar diria que ela é ou foi uma bailarina. O desfilar dessa mulher pelo bar foi seguido na ida e na volta por faces sequiosas dos cavalheiros exalando desejo e por faces raivosas das damas exalando inveja. Ela nem aí com nada disso, sentou-se de novo em seu lugar.

O barman está no centro do balcão, bem entre nós. A moça dá um profundo gole em seu Black Label, de olhos fechados. Fica assim alguns segundos curtindo a bebida percorrer as suas veias. Eu percebo que lábios deliciosos ela tem e tento adivinhar o que se passa na alma daquela mulher tão bonita e angustiada. Dá uma vontade de escrever... Tanta que eu quero que minha hibernação criativa se dane. Pego um guardanapo e peço uma caneta ao garçom. Rabisco uns versos com a minha letra ininteligível. Olho para a bailarina - para mim ela é bailarina - e ela está me olhando também. Fico desconcertado e disfarço pedindo outra cerva, mirando as garrafas nas prateleiras como se elas tivessem sido colocadas ali naquele instante. Dou a peculiar mexida em meus bagunçados cabelos. A morena dá outro gole daqueles, com tanto prazer que até eu me esquento e fico com vontade de Black Label. Ela abre os olhos e me olha, pega o seu copo, levanta o corpo escultural do banquinho e vem na minha direção. Aí me dá uma quentura que eu ligaria o ar condicionado no máximo mesmo com este enorme frio. Não fala nada, sorri e senta-se ao meu lado.

O barman sorri também, pela nona vez, mas este foi riso mais generoso, cúmplice. O pianista até faz uma pausa fora de hora para acompanhar o que está acontecendo. Súbito, de forma simultânea, a bailarina e eu tomamos as nossas bebidas sorvendo cada gota, sentindo o sabor escolhido como companhia da madrugada. Estamos quietos, não conversamos a noite inteira e eu nem me agüentando de calor tiro o casaco, pego outro guardanapo e escrevo “Take Five”. Eu sempre peço “Take Five” aos bons pianistas. O garçom leva o papel ao músico, que deve adorar essa canção porque sorri pela primeira vez de forma sincera, se ajeita todo e manda ver. Foi ótimo. A bailarina, o barman e eu acompanhamos o latino percutir o teclado, o que ele faz com a técnica e o swing necessários. Acaba a música e eu começo a elogiar a interpretação estalando os dedos. A bailarina dá uma risada maravilhosa e cheia de charme começa a estalar os dedos também, assim como o barman, que repete o nosso gesto com uma sonora gargalhada, a segunda da noite. A mesura com a cabeça feita pelo pianista foi bem natural desta vez.

A partir daí a cada canção encerrada, a linda bailarina, o velho barman e eu estalamos os dedos gargalhando como crianças sem trocarmos palavras. A bailarina esqueceu mágoa. O barman fez-se feliz. O pianista sentiu-se recompensado. E eu pasmo fiquei até nos descobrirmos sozinhos com o garçom arrumando as cadeiras, pois já era hora do bar fechar. Pedimos as contas, eu pago em dinheiro e a bailarina com cartão de crédito. Tem neste momento o semblante de uma deusa. Uma expressão revigorada, forte, alegre. Agora sim seu rosto é totalmente esplendor. Levanta-se, dá-me um abraço e um beijo tão intenso que eu bebo nessa hora umas cinco doses de Black Label através da língua da linda bailarina morena. Olhando dentro de mim ela fala obrigada anjo e parte. O barman pega outra garrafa de Black Label, serve três copos, coloca a garrafa no balcão, chama o pianista, sentam-se cada um de um lado e ficamos os três emudecidos, com os cotovelos apoiados no balcão, pensativos, mergulhados em nossas solidões e mirando as garrafas nas prateleiras como se elas tivessem sido colocadas ali naquele instante.

A BAILARINA, O BARMAN E O PIANISTA - Parte 2

Eu não queria voltar ali. Eu tinha a certeza de que não ia ser igual. Eu acreditava que nunca um raio cai no mesmo lugar duas vezes. Mas eu, sozinho noutra madrugada fria, saí desprovido de sentimento, de expectativa e de esperança. O carro me guia pela Avenida 23 de Maio muito rapidamente. Eu gosto de acelerar a vida, mas não tenho mais coragem de arriscar tanto. Não pelo medo da dor. Não pelo medo de morrer. Apenas medo de algo muito superior à dor e à morte. Vou assim até quando acho que o automóvel parece se desintegrar. Assim como os meus sentimentos confusos, arremedos de células que pensam tentando se juntar, para formar novamente o desenho de uma alma que habitará um corpo, que terá um coração pulsando e um cérebro independentemente rebelde, que terá vida própria para fazer o meu pobre Fiat Palio ir até o endereço daquele bar. O bar onde eu conheci o excelente e estranho pianista latino, o velho barman simpático carcomido pelo tempo e ela, a bailarina. Ela, de quem eu certa noite consegui suprimir a mágoa, a solidão e a tristeza sem trocar uma palavra. E que por isso recebi o beijo mais repleto de amor sincero que eu já tive oportunidade de ter. Será que a verei esta noite?

O carro se estaciona bem à frente do bar. Fico dentro dele lembrando cada detalhe ocorrido naquela madrugada mágica e rara de junho. A bailarina solitária e melancólica, sua beleza e corpo estonteantes, o charme de suas mãos pegando a bebida com delicadeza, a boca carnuda tocando o copo sensualmente com enorme desejo. Ela bebia aquele wisky com volúpia, certamente para acalentar a sua alma que se distanciava e ia visitar os gélidos recônditos da tristeza em que estava mergulhada.

Aqui de fora não dá para ouvir se o estranho pianista latino toca seu jazz. Espero que sim, porque no mínimo eu e minhas dúvidas passaremos momentos acompanhados por uma ótima música e pelo velho e simpático barman. Um profissional com a experiência de anos lidando com gente de todos os tipos nas mais variadas situações: embriagados, educados, grosseiros, atenciosos, paqueradores, silenciosos, espalhafatosos, ricos, miseráveis, tarados, idiotas, geniais...

Hesito muito em sair do automóvel. Chego a ligar o motor para ir embora e ficar com a anterior imagem surpreendente e inacreditável que ainda permanece na minha cabeça. A sensação do beijo delicioso que ficou na minha boca até hoje. O beijo da bailarina renascida em alegria ao se despedir de mim naquela noite. Rememoro os olhares assustados do barman e do pianista quando ela me abraçou forte. Não queria correr o risco de entrar no bar e não acontecer nada desta vez. Mas, teimosa e desafiadoramente, entrei.

Os meus olhos passeiam pelo bar e só então reparo quão agradável é a penumbra do seu ambiente aconchegante. O som do piano chega aos meus ouvidos ao mesmo tempo em que eu vejo uma mulher sentada no mesmo banquinho da bailarina naquela noite inesquecível. Será que é ela? Só pode ser ela com aqueles longos cabelos soltos, a postura impecavelmente ereta e nobre. Mas não é possível. Seria muita coincidência ela ter voltado ao bar no mesmo dia que eu. Ando três passos no ritmo de “Chovendo na Roseira”. Assim que o pianista me vê faz aquela esquisita mesura com a cabeça, bastante veemente e engraçada desta vez. O músico realmente ficou feliz quando me viu. Sabe que chegou alguém para prestar atenção ao seu concerto, reverenciando-o com o famoso estalar de dedos. O velho barman está ocupado preparando alguns drinks coloridos, enfeitando-os com rodelas de laranjas e canudinhos. E a mulher eu agora tenho quase certeza de que é a bailarina. É impressionante essa situação, mas só pode ser ela. Mais de duas semanas querendo saber se a bailarina é de verdade, se tudo aquilo tinha realmente acontecido ou se tinha sido fruto da minha cabeça louca de poeta desesperada por uma aventura, sequiosa de paixão, procurando uma musa para as minhas palavras despejadas insanamente no papel, e eu finalmente ia descobrir. Fui direto para o banquinho sentando-me discretamente, com o coração disparado, o corpo fervendo, os olhos sem saber se olhavam pra dentro de mim, para as bebidas nas prateleiras ou para a mulher sentada ao meu lado direito, três banquinhos depois.

O pianista emenda “Samba De Uma Nota Só”. Olho para a morena. É a linda bailarina sim! Não pode ser verdade, mas é ela. O seu semblante está em paz. Não denota a enorme e triste solidão da noite de junho. Está quieta com seus pensamentos, tomando o Black Label daquele jeito prazeroso e particular. Nunca vi uma mulher beber assim. Também nunca vira uma mulher como ela. Uma obra prima de Deus. Que artesão ele foi, com que esmero esculpiu essa filha. Ela não deve ter quarenta anos porque parece muito menos. Sei que tem mais de trinta por suas atitudes seguras, pela maneira de andar desfilando que provoca homens e mulheres. Sabe que deslumbra a todos e domina isso magistralmente. É o tipo mais perigoso de mulher. Intimida qualquer um. Não a mim. Adoro mulher assim. Amo conquistar e ser conquistado por uma mulher dessa estirpe. O mais interessante é que normalmente me ignoram, mas consigo por vezes dar-me bem. Não tenho a menor idéia da razão disso acontecer, mas “tenho estradas nas linhas das mãos”. Imagino as minhas mãos quentes e lisas pegando forte o corpo da bailarina. Eu devoraria inteirinha até a alma dessa mulher. E me deixaria devorar com todos os meus sentimentos, pensamentos, desejos, medos, angústias. E depois daquela cena em que ela me beijou e ainda não sei se aconteceu, preciso descobrir se a bailarina está ali mesmo. Já não tenho certeza nem se eu estou.

A BAILARINA, O BARMAN E O PIANISTA - Parte 3

Vejam só eu sonhando em conquistar a bailarina. Eu falei para a minha cabeça ir com calma! Chega, chega de exagerar nos devaneios. Nem sei se a bailarina existe e a minha cabeça tem a ousadia de sonhar que estou tocando aquele corpo fenomenal. Ai meu Deus, só falta eu começar a sonhar com ela toda nua! Espera aí, ousadia tem limite, preciso controlar a minha mente, sou o dono dela afinal. Vou beber é um Ballantine’s, respirar fundo, contar até um milhão... Eu consigo, não vou ser manipulado pela minha mente. O barman notou-me e veio me cumprimentar muito sorridente, quase pulando o balcão para um abraço. Fico até sem graça. Bem na hora em que toca o celular da bailarina e ela o atende. Distraída, nem percebe a minha presença. O barman já foi providenciando o baldinho com três Bohemias de garrafinhas long neck, pois me esqueci do Balla. Ele serve o primeiro copo e fala que bom que vocês voltaram. Vocês quem? Eu e as minhas angústias? Eu e a busca permanente de saciar a minha fome de vida? Eu e a poesia maldita que sai da minha cabeça mesmo quando estou feliz? Ou eu e a bailarina? Será que ela também nunca mais tinha voltado a este bar? Ela desliga o celular e ao ajeitar os cabelos pretos, escuros como madrugada com luar, quando a bailarina seria o brilho da lua, vislumbro uma aliança que não esteve nunca em seu dedo. A música acaba e eu estalo os meus dedos, estes sem aliança nenhuma.

A bailarina finalmente percebe a minha presença e abre um sorriso que não dá para descrever. Se vocês leitores puderem aguardar vou procurar algo em Quintana, Vinicius ou Drummond para comentar esse sorriso. Eu, com minhas palavras inertes de talento, digo que foi um sorriso igual ao de uma criança perdida na praia e que acaba de encontrar o pai. Quem já se perdeu já deu esse sorriso misto de alívio e felicidade imensa. Ou o rabo-sorriso de um cão quando o dono volta pra casa. O dono está fora somente há poucas horas, mas a alegria do cão é como se o dono estivesse longe há anos. O sorriso de mãe que acaba de parir e tem o seu bebê pela primeira vez nos braços compensando a dor do parto. Ou desse bebê no conforto dos braços que pertencem ao corpo que era sua casa até então e de onde fora despejado. O sorriso de um alcoólatra quando toma o seu primeiro gole do dia. Toma esse gole como se fosse o último. Ou o sorriso de uma virgem que acabou de ser deflorada pelo amor da sua vida. Mesmo que nunca mais veja esse homem, é o amor da vida. O sorriso de um condenado à morte, nervosamente sentado na cadeira elétrica, bem no instante em que ocorre um apagão geral. Um riso de incredulidade total. É assim e não estou exagerando. E o meu riso é tudo isso somado a espanto, pois ela levanta-se, pega o copo, balança os cabelo pretos e o corpo estonteante vindo para mim com seu andar de dança. Fui eu quem falou que esse tipo de mulher não me intimida? Esqueçam o que eu disse!

A bailarina se aproxima e ainda em pé aperta meu braço esquerdo com a mão direita, encostando os lábios carnudos nos meus, enquanto eu seguro o copo meio trêmulo com a mão esquerda e a minha mão direita, mais esperta naquela hora, procura enlaçá-la pelas costas puxando-a para perto. Foi rápido esse beijo, mas não menos saboroso. Principalmente considerando-nos quase desconhecidos, ou quase amigos ou quase sei lá o quê. Nesse momento ficou definida a existência da bailarina, então o beijo da outra noite também tinha sido real. Para não haver mais questionamentos eu pergunto ao velho barman se ele existe e ele com uma expressão preocupada me responde seriamente que tem certeza que sim. O pianista das mesuras começa a tocar “Take Five” e todos têm certeza de que não estamos sonhando. A bailarina senta-se bem encostadinha em mim no banquinho ao lado. Adoro mulher que gruda. Ainda mais aquela obra prima do bom Deus. Fico até com certo ar de convencimento e já não estou tão intimidado assim. De repente, penso, eu posso controlar essa situação. Estou com aquela mulher fantástica colada em mim, acabo de ter certeza da existência dela e ela da minha, quando as mãos da mulher me chamam a atenção e eu que nunca ligo para alianças nos dedos de ninguém, vejo novamente a aliança da bailarina. Ela dá uma gargalhada com uma sonoridade bem marota, tira a aliança do dedo e joga na bolsa de forma displicente. Fico numa excitação tal, que a partir desse momento acho que nunca mais confundirei sonho e realidade.

Está respondida a grande pergunta? Acabou o suspense? A bailarina é de carne (que carne) e osso (que ossos). Tudo começou a acontecer num mês de junho, foi rápido, louco demais e apenas fui ter coragem de falar da bailarina no momento em que iniciei este relato, digitando palavras nervosamente no computador. Parece ter sido fácil, parece uma estória comum de um cara comum encontrando uma mulher incomum que vai com a cara do cara e rola uma grande paixão, só que o cara não era nada comum e ele surgiu para essa mulher quando ela vivia uma situação incomum que por causa dele se tornou tremendamente incomum. A presença do cara deu vida à mulher. A presença da mulher transformou a vida do cara. Poderiam caminhar para um romance com final feliz. Mas estórias com finais felizes são criadas para poucos. Não para dois seres essencialmente fora do comum. Não para pessoas que carregam os sentimentos nas mãos, fazendo deles um presente ou uma arma. A escolha do destino quase sempre é desfavorável aos personagens especiais da vida. Nesse tempo em que eu vivi as emoções aqui narradas, havia fechado o meu coração para novos amores tão violentos. Já perdera a primeira mulher da vida e estava perdendo a segunda, o que havia resultado em centenas de composições e poemas. Foi então que conheci a bailarina, de quem nunca conseguira escrever uma palavra ou pra quem nunca compusera uma nota musical até agora, porque a perdi também. Você está achando que a estória não tem mais interesse, que realmente acabou o suspense e que só resta contar como perdi a terceira mulher da minha vida? Você vai saber que nada é tão simples assim para este narrador, que depois da bailarina jurou mesmo nunca mais se apaixonar.

A BAILARINA, O BARMAN E O PIANISTA - Parte 4

A madrugada iniciou o seu declínio, mas o pianista continua inspiradíssimo tocando com uma sensibilidade ímpar. Interpretando“Moon River”, atinge no âmago os poucos clientes que estão no bar, além do garçom que fica até o último freguês. É muito aplaudido. Coloca ritmo e seu peculiar swing para executar a próxima música, “I’ve Got You Under My Skin”, sendo assistido com muita atenção. O velho barman, sempre solícito, fica com os olhos em revezamento entre os drinks, os clientes, o pianista e principalmente a bailarina e eu que estamos nos entendendo muito bem e namorando deliciosamente. Conversamos e nos beijamos sem parar, mas posso afirmar que a bailarina tem muito mais do que a enorme beleza que me deixa constrangido por uma mulher desse nível estar comigo e com minha ausência estética. Ela tem inteligência privilegiada, um humor irônico e sagaz que combina perfeitamente com o meu. Aliás, eu estou certo de que nós combinamos perfeitamente em tudo e minha mente começa novamente a acelerar pensamentos, embaralhando palavras e confundindo as que deveriam sair da minha boca. Só quero aquela mulher nua em meus braços. Eu sou só desejo e raciocínio não faz mais parte de mim. A bailarina trata de me trazer para a realidade dizendo já estar cansada e que é hora dela ir embora. Como raciocínio não faz parte de mim não reajo. Ela me dá mais um daqueles beijos que me percorre inteiro instantaneamente como cinco doses de Black Label nas veias, escreve o número do celular num guardanapo e fala ligue quando quiser na hora que quiser. Parte.

Faltam poucas horas para raiar o dia. A saída da bailarina deflagra a movimentação do bar rumo ao encerramento das atividades. Todos estão com suas missões cumpridas. O pianista latino fecha o instrumento e vai lanchar. O velho barman inicia a limpeza do balcão, ajeitando copos e garrafas. O garçom leva as contas para os últimos clientes e arruma mesas e cadeiras almejando merecido descanso. Eu tenho a sensação que há um desapontamento no ar porque eu deixei a bailarina ir embora sem nem esforço para ir junto, sem nem esforço para ela permanecer mais um pouco. Fico intimamente irritado com eles. Eles tinham acompanhado a estória desde a primeira noite, viram que eu namorei e conversei com a bailarina o tempo inteiro desta vez e não estavam satisfeitos com a minha performance? Eu estava me julgando um super-herói merecedor de medalhas e troféus e o barman, o pianista e até o garçom menosprezavam a minha atuação? A irritação íntima passa rapidamente para raiva e a raiva para um ódio incontrolável para comigo mesmo. Pego o guardanapo com o telefone da bailarina, lembrando que ela tinha dito para eu ligar quando e na hora em que eu quisesse. Então o quando para mim é agora. A hora, quatro e trinta e cinco da matina. Ela atende e eu falo que estou com saudades. Ela dá uma gargalhada marota e excitante com a voz rouca de whisky. Dá-me um endereço que eu nem anoto e rindo novamente fala para matarmos a saudade.

Não sei como chegar até aquele prédio situado em algum lugar da zona norte, mas o Palio sabe e me leva até lá. Matamos muito mais do que saudade. Quase nos matamos de sexo! A bailarina é uma máquina de prazer e eu, como um bom tarado romântico, não posso decepcionar a ela, a mim, ao Palio, ao pianista latino das mesuras, ao velho barman carcomido pelo tempo, aos clientes do bar, ao garçom que queria descanso, às mulheres da minha vida que eu tinha perdido anteriormente, à poesia, aos poetas, à música, aos compositores, à minha cabeça louca e desvairada, às minhas angústias, dúvidas, alegrias, tristezas e frustrações, aos homens que já tinham desejado sem sucesso aquela mulher fascinante, aos amores eternos, aos amores fugazes, às paixões malucas, a Deus que esculpira tal obra prima, aos meus bagunçados cabelos, a vocês que estão acompanhando esta estória doida e até àqueles que nunca irão ler estas linhas. Confesso que fui bem. Muito bem. Sobrevivi, tanto que estou aqui para comprovar. Não vou descrever detalhes de como é amar a bailarina, nem falar sobre ela nua, o corpo moreno tão perfeito que dá até desespero de olhar, mas afirmo que quando entrei nessa mulher, nada mais importou. Nem respirar, nem sexo, nem amor, nem beber, nem família, nem morte, nem poesia, nem trabalho, nem tempo, nem grana, nem saúde, nem alegria, nem vida. Tudo era pouco comparado a estar dentro da bailarina.

A BAILARINA, O BARMAN E O PIANISTA - Epílogo

Chego à minha casa perto do meio dia graças novamente aos serviços prestimosos e abnegados do Fiat Palio. Parece que esse carro é uma extensão da minha cabeça, também com vontade própria e tal. Ele não pode me ajudar num momento importantíssimo que vou contar logo mais, mas não o recrimino pelo tanto que foi parceiro sempre. Todos ainda dormem porque em casa o horário noturno é extenso e repleto de ação. Tomo um banho lembrando cada momento da longa noite e vou trabalhar direto. Acho que não devo ligar para a bailarina e de noite vou beber com amigos que me dizem que eu estou mais estranho do que de costume. Esquisitos são eles, pois estranho é nada pelo que eu tinha passado. Só privilegiados têm noção do que é a bailarina e a maravilha de compartilhar as carícias mais lascivas com ela. A minha agitação está grande, assim como a dispersão em relação aos papos que para mim não apresentam nenhum atrativo. Vou para casa, toco um pouco de violão e desmaio. Acordo dia seguinte sobressaltado com a campainha da casa soando pouco depois das treze horas e resolvo verificar a caixa de correspondências. Entre muitas contas tem um envelope azul. Olho o remetente e está escrito Bailarina! O envelope é uma surpresa principalmente pelo seu conteúdo: uma aliança e uma cartinha de texto objetivo e inesperado.

Meu anjo,

Maravilhosos todos os momentos que passamos juntos. Na primeira noite de junho eu estava tão triste, tão desesperadamente melancólica, com uma mágoa maior do que pode caber em qualquer coração. E conheci felicidade num estalar de dedos. Eu sorri. Na última noite com você eu fui uma mulher completa em teu amor ensandecido e poderoso a ponto de me fazer sentir o que é paixão. Eu vivi. Mas eu não existo meu amor. Eu sou apenas uma mulher que você moldou em seus sonhos. Outra mulher da sua vida lembra-se? Uma obra prima esculpida de acordo com os seus desejos, não pelo mérito de nenhum deus. E você vai me perder agora. A terceira mulher da sua vida te acorda pra realidade. Se cuida.

Beijos, Bailarina.

Gelo e queimo ao mesmo tempo. Quase tenho uma síncope. A minha agonia é insuportável. Só pode ser uma brincadeira de péssimo gosto. Eu tinha estado dentro da bailarina, eu tinha certeza de que havia acontecido uma noite de amor que eu nunca experimentara igual. Eu tinha lambido com o maior tesão a tatuagem indefinida nas costas daquela mulher. Eu tinha apertado o corpo escultural dela com minhas mãos e junto ao meu corpo. Ainda podia sentir o seu perfume em mim. Havia demorado tanto para compreender que ela não era fruto da minha imaginação sequiosa por musas! Não podia ser verdade o que estava escrito na carta. Não fazia sentido. Vai ter imaginação fértil assim no inferno, refleti eu, antes mesmo da minha cabeça. E a aliança sem nenhum nome ou inscrição? Por que ela a teria enviado com a carta? Na minha mente a terceira gargalhada do barman ecoa retumbante, assim como acordes dissonantes feitos os de Hermeto tocados pelo pianista. Ligo para o número do celular da bailarina e a gravação da operadora fala que o número de telefone não existe. Entro no Fiat Palio e tento relembrar onde tínhamos ido no amanhecer da sexta feira. Rodamos muito. Nem eu nem o Palio conseguimos encontrar aquele prédio situado em algum lugar da zona norte. Resta ir alguma noite ao bar ver se encontro um velho e simpático barman carcomido pelo tempo, um excelente pianista latino fazendo mesuras com a cabeça, um garçom atendendo poucos clientes, ávido pelo seu descanso. E uma morena triste e deslumbrante com corpo de bailarina e longos cabelos pretos, sentada ao balcão frente a um copo de Black Label. Ela abrirá lindo sorriso quando me vir. Eu e o Palio sabemos qual é o bar e qual o endereço dele. Não tive coragem de ir até hoje, mas esta noite vou lá.

POST ESCRIPTUM
Bem agora, no momento em que o Fiat Palio está me levando ao bar, a minha louca e desvairada cabeça de poeta se esforçou e resolveu criar umas palavrinhas dirigidas à Bailarina. Chegando ao bar vou escrevê-las num guardanapo, colocar no envelope azul e entregar a ela. Ou não...

À Bailarina

Mulher dos sonhos transparentes,
lascivos e indecentes,
construídos na paixão.
Mulher, aceito a tua dança
formando aliança
com nossa ilusão.
Abraço a fome do teu corpo,
disfarço e bebo a tua dor.
Cansaço e mágoa de um morto,
faço-me assim o teu consolador.
Mulher, não se ama impunemente,
mesmo que a gente tente
não há como escapar.
Mulher, deixaste a tua lembrança
no beijo que ainda alcança
e torna-nos um par.
Apague essa realidade.
Negue ser de um deus cruel.
Faça em mim tua vontade.
Nasça a tua vida neste céu.


FIM

O HOMEM QUE IA MORRER DEPOIS DE AMANHÃ

Tarde da noite ele dirigiu-se à sua cama desanimadamente. Até os chinelos lastimaram os seus passos depressivos e agradeceram o repouso merecido. Apagou o último cigarro no cinzeiro do criado mudo e tossiu o pulmão, que saiu pela boca por segundos e voltou tão violentamente ao seu peito que ele se dobrou inteiro de dor. Olhou para a cama e lá estava a gordinha gostosa que ele ainda insistia em chamar de esposa, mesmo sabendo que ela dava para o irmão dele, para o vizinho, para o filho do vizinho, para o moleque que entregava pizzas, para o dono do bar da esquina e até para a manicure do salão de beleza da rua. Só porque há anos ele brochava. Nem a sua língua endurecia mais. Nem o seu dedo era duro. Toda noite a gordinha deitava na cama exalando o cheiro de vários homens e depois de um escandaloso bocejo dizia ao companheiro: - boa noite seu frouxo, até amanhã. Ele era realmente um bunda mole, tinha engordado mais de quarenta quilos nos últimos anos. A sua mente estava flácida. As suas pálpebras pesavam o dia inteiro. Estava falido, não conseguira ter filhos, tinha um subemprego e um patrão que o chamava todos os dias de burro e incompetente. Aliás, humilhação era uma constante em sua vida, pois perdera a coragem de reagir ou argumentar. Desaparecera a aptidão de concatenar a fala ou pensamentos. Crianças apontavam para ele nas ruas como se vissem uma aberração. Ouvia impropérios de qualquer pessoa logo baixava os olhos, colocava as mãos nos bolsos e saía capengando com a cara redonda mais inchada ainda, vermelha de vergonha. Não tinha vontade nem de se olhar no espelho, porque ficava enojado com sua péssima aparência

Deitou-se ao lado da rechonchuda sensual de barriga pra cima, fitando o vagaroso ventilador de teto que lançava os braços bravamente contra o calor insuportável. Subitamente um pensamento invadiu a sua mente. Sim, invadiu, não podia ser dele porque ele era um completo idiota que não pensava. O pensamento disse assim para ele: “- você vai morrer depois de amanhã”. Ficou assombrado com aquelas palavras, mas aos poucos relaxou. Iria morrer, que bom. Seria o fim de todo o seu desgosto, de toda a mágoa daquela vida infrutífera. O sofrimento não mais afligiria o seu corpo, a sua alma poderia ir descansar no limbo dos indigentes. Depois de amanhã ele iria morrer, que dádiva. Iria finalmente assumir a podridão do seu ser e descansar eternamente o esqueleto no frio da terra. Nem adubo viraria, não seria semente de nada, pois até os vermes rechaçariam a sua carne e a terra, se pudesse, vomitaria seus restos num espasmo nauseabundo. O pensamento filho da puta e ao mesmo tempo tranqüilizador que havia invadido o vazio do seu cérebro, continuou a fermentar palavras tripudiando do seu estupor: “- amanhã é o seu último dia de vida, depois de amanhã você vai morrer”, reafirmou o pensamento. Num último rasgo de lucidez mórbida, o homem, antes de fechar os olhos e numa atitude inédita em anos de existência insípida, decidiu aproveitar cada segundo do último dia de sua vida que começaria ao amanhecer. Fechou os olhos já se imaginando num confortável caixão depois de amanhã.

O HOMEM QUE IA MORRER DEPOIS DE AMANHÃ - Parte 2

Acordou super cedo com uma animação inusitada. Os braços do ventilador de teto pareciam girar mais rápido, como que comemorando a vitória sobre o calor. Ele era outro homem porque ontem soubera que iria morrer amanhã. Sendo outro homem, olhou para a rotunda desejável que dormia ao seu lado e ficou excitado. Impressionante que depois de tantos anos sem manifestação alguma nem para uma masturbação solitária, agora que sabia que ele ia morrer o seu pau se arvorava no direito de um derradeiro prazer como um condenado ao cadafalso.

Puxou fortemente a mulher de lado e beijou o pescoço dela com tanto ímpeto e prazer que o deixou roxo. A parceira de cama acordou surpreendida achando que ali estava outro homem, pois ele começou a beijar os seios dela e a lambê-la literalmente de cabo a rabo. Ela sentiu um membro enrijecido disposto a penetrá-la avidamente. A volumosa, sem entender nada, começou a gostar ainda mais da estória quando o homem, que não podia ser o impotente do marido, montou em cima dela e começou a comê-la com um desespero de presidiário que não fazia sexo há dezenas de anos. O tal a virou do avesso introduzindo o pênis tarado por trás dela com tanta voluptuosidade que quase rasgou as nádegas da mulher, que urrou de prazer gozando sem parar. Ele a virou de frente novamente e colocando o pau na boca dela mandou que chupasse gostoso, no que foi obedecido prontamente. O marido quase desconhecido liberou um orgasmo contido há tanto tempo que transbordou da boca da vadia para a cama, da cama para o chão e do chão para o teto do quarto. Então, saciado o seu tesão, ele enfiou a mão na cara da esposa devassa, que adorou e pediu mais. Ele a atendeu e enfiou a mão na cara dela sem parar, cobrindo a vagabunda de porradas. Ela nem teve tempo de gritar, de tanto que apanhou. O homem que ia morrer amanhã bateu até que a mulher ficasse inerte, com sua farta gordura espalhada pela cama. Com uma tesoura enorme e afiada cortou a língua da safada, que não mais o chamaria de brocha ou frouxo. Aliviado, o desproporcionado acendeu o primeiro cigarro do dia e não tossiu porque era um novo homem, era alguém que iria morrer amanhã.

Limpou a tesoura no lençol e a colocou no bolso junto com toda a grana que tinha. Fechou a porta do quarto, trancou a casa e foi até o bar da esquina que era de um dos caras que comia a sua "esposa". O magrelo desgraçado dono da espelunca só lhe dava café adormecido com leite sem nem esquentar e ainda preparava o pãozinho na chapa suja, com as mãos mais imundas ainda de coçar o saco, porque o lugar vivia às moscas. Tomava o café da manhã ali há tanto tempo que já se habituara a ser mal tratado. Na verdade ele era um verdadeiro saco de pancadas ambulante. O dono do bar acabara de abrir as portas e quando o viu foi logo falando: - bom dia trouxa vai um leitinho gelado aí? E abriu a bocarra numa gargalhada ridícula. Quando o desavisado abriu a boca de novo, o homem que ia morrer amanhã, sem pensar, porque sua cabeça era despovoada de idéias, puxou a língua do gargalhante e a cortou com a tesoura afiada. Nunca mais o palhaço falaria bom dia trouxa para ninguém. Levantou o magrelo pelo colarinho feito uma pluma, colocou-o em cima do balcão e foi deslizando o coitado em cima dos copos de vidro enquanto o sangue jorrava da boca dele. Tirou várias garrafas de leite da geladeira e despejou no ex-linguarudo perguntando: - vai mais um leitinho gelado aí? Jogou o dono do boteco totalmente estropiado sobre as mesas, destruindo tudo. Limpou a tesoura numa toalha e enquanto o cara chorava de dor, todo sangrento e arrebentado, desceu a porta do bar e retirou-se calmamente em direção ao ponto do ônibus, bem na hora em que chegou o coletivo que tomava pontualmente todos os dias às seis da manhã.

Entrou no ônibus e logo o cobrador que passava todas as viagens atormentando-o, riu sonoramente dizendo alto: - salve “rolha de poço”, vai entalar na catraca de novo? Só que agora o homem sabia que morreria amanhã e também que nunca mais iria entrar naquele ônibus e ouvir “salve baleia”, “salve balofo” ou “salve balão”. O negão ria despreocupadamente das suas próprias piadas durante o trajeto todo... “E aí jumbo, fala paquiderme” e depois continuava com “vai sambar aonde rei momo?”“Alguém quer comer um pudim de banha?”O homem levantou do banco e o cobrador gritou: “- sai da frente que o tonelada se mexeu!” “Já vai descer, jóquei de elefante?” perguntou com os dentões brancos contrastando com a pele de ébano. O homem de cabeça desprovida de raciocínio se aproximou da catraca. Inesperadamente catou as orelhas do cobrador apertando-as até sangrar e bateu brutalmente a cabeça do pobre três vezes na mesinha de dinheiro. Quando o apavorado gritou, cortou o órgão carnudo e móvel situado dentro da boca dele com a tesoura sem piedade e o arrastou por cima dos passageiros até atirá-lo pela porta de trás com o ônibus em movimento. Os passageiros, desesperados, passaram a gritar socorro e o motorista brecou o ônibus assustado. O homem que ia morrer amanhã colocou o dinheiro da passagem em cima da mesinha, passou apertado pela catraca e desceu imperturbado do veículo, não sem antes limpar o sangue da tesoura na gravata do aterrorizado condutor do coletivo.

O HOMEM QUE IA MORRER DEPOIS DE AMANHÃ - Parte 3

Foi andando por poucos quilômetros até o escritório de contabilidade em que trabalhava, localizado no centro da cidade. O escritório ficava em cima de uma loja de roupas e ele subiu os degraus para o segundo andar com vigor que não sentia há tempos. Ao entrar na empresa já estavam lá o boy e a velha secretária. Falou bom dia, mas nenhum dos dois o olhou ou se dignou a responder. Sentados cada um à frente de uma mesa, ignoraram como sempre a sua presença que não fazia a menor diferença, não tinha a menor importância. Imediatamente o patrão entrou na sala dizendo aos berros que para variar ele estava atrasado, que ia descontar do salário que ele nem merecia receber, que era um incompetente, um estúpido fracassado e que estava propenso a despedi-lo porque não poderia mais manter um empregado relapso, inapto e vagabundo. O homem que ia morrer amanhã, sem pensar, porque o seu cérebro era destituído de miolos, saiu detrás da sua mesa, trancou a porta do escritório, fechou as janelas e cerrou as cortinas. Foi até o patrão e inesperadamente agarrou a cabeça dele, puxou-o até o armário fechando a porta do mesmo violentamente várias vezes no crânio do chefe, que ao pedir por clemência teve a língua cortada com a tesoura sem dó. Esse não desancaria mais empregado nenhum, falou o ofendido. Depois, pegou as cabeças da velha secretária e do boy, batendo uma na outra com toda a força. Como eles não usavam as suas línguas para lhe responder bom dia, cortou-as facilmente também, pois ambos estavam petrificados de medo e dor. Jogou os três no banheiro encharcados de sangue e os abandonou lá com a porta trancada. Tomou um café, fumou um cigarro, limpou a tesoura na blusa da secretária que estava em cima da mesa e resolveu comprar uma camisa nova, pois a que usava estava amarrotada e manchada de sangue.

O incauto vendedor falou tirando sarro que iria procurar algum número de camisa para hipopótamos. Contava com um metro e noventa de altura, era esbelto e costumava falar mais do que a própria boca, incomodando todos os fregueses com suas perguntinhas inconvenientes tipo leva isso? leva aquilo? Foi buscar no estoque uma camisa de tamanho extra gg e voltou com alguns modelos nas mãos, dizendo para o homem que ia morrer amanhã experimentar as roupas no banheiro, porque nos provadores só cabia gente normal... O vendedor foi seguindo o comprador da camisa, continuando a fazer gozações: - se essas camisolas não servirem a gente junta três e costura ou então busca uma roupa de mastodonte! Entraram no banheiro, mas antes de vestir a nova camisa o avantajado agarrou o vendedor pelo pescoço, enfiou a cabeça dele numa privada e apertou a descarga, quase fazendo o pobre coitado descer para o esgoto. O trabalhador tentou gritar por ajuda, mas o homem que não pensava por ter um vácuo dentro da cachola pegou a tesoura, cortou o órgão gustativo do falastrão e o enfiou novamente dentro da privada gargalhando e batendo com a tampa do vaso sanitário no cara até cortar o pescoço do quase sufocado. Após o outro parar de lutar vestiu a camisa nova, limpou a tesoura na camisa velha e foi embora, deixando o vendedor afogando-se na privada, no sangue e no pranto.

Nesse instante tocou o celular do homem e ele nem bem tinha falado alô o gerente do banco já foi dizendo irritadíssimo que estava mandando as suas dívidas para protesto, porque o homem que ia morrer amanhã era um tremendo de um salafrário que não cumpria os seus compromissos há mais de ano. O homem respondeu que estava com o dinheiro para quitar todas as dívidas e convidou o gerente para um almoço no restaurante em frente ao banco, o que foi aceito imediatamente. Apesar disso o bancário ainda manifestou que o devedor não fazia mais do que a obrigação em pagar os valores e oferecer a ele um almoço para minimizar as dores de cabeça e prejuízos que ele tinha causado. Escutando aquelas agressões, o homem que ia morrer depois de amanhã segurou tão intensamente a tesoura em seu bolso que machucou as próprias mãos. O seu instinto de animal predador o fazia estar certo de que iria devorar o gerente do banco, se alimentando do rancor do estúpido brevemente.

No trajeto para o restaurante, ao passar em frente a um templo, o homem entrou para ouvir o sermão de um líder religioso, afinal ele ia morrer amanhã e quem sabe fosse bom morrer de bem com Deus. Só que o ministro da fé, com gestos teatrais e palavras veementes, apontou para o gigantesco cidadão que entrava e falou: “- vejam meus amigos, o tamanho desmedido desse pecador que chega nesta casa de oração para se arrepender ou então arderá no fogo do inferno para sempre. Está na cara que é um guloso, um verdadeiro glutão, um exagerado que desperdiça o sagrado alimento enquanto milhões de pessoas passam fome. Ele só tem uma salvação. Fazer uma oferta generosa a Deus e dar-lhe todo o seu dinheiro para poder entrar no paraíso abençoado. Doe o seu dinheiro a Deus, irmão pecador, liberte-se da gula e salve-se, gritou o pregador histericamente.” Parecendo sensibilizado e sem pensar, porque o seu cérebro era carente de imaginação, o homem aproximou-se do púlpito com duas notas de cem reais em cada mão e quando o clérigo abriu um enorme sorriso gritando aleluia, aleluia, teve o órgão da deglutição rasgado com a tesoura afiada, para nunca mais chamar ninguém de irmão ou pecador. O colossal levantou e jogou o púlpito sobre corpo do eclesiástico, então saiu do templo gritando aleluia e abençoando os atônitos e paralisados fiéis.

O HOMEM QUE IA MORRER DEPOIS DE AMANHÁ - Parte 4

E assim seguiu o homem que ia morrer amanhã, feito um serial killer podando com a tesoura enorme todas as línguas azaradas que cruzavam com sua raiva. Justiceiro do vocábulo, defensor das aurículas, cortou a língua do imprudente gerente do banco em pleno restaurante lotado, a de um político que estava em um comício prometendo resolver todos os problemas da cidade, a de um jornalista esportivo que criticava o seu coringão em um programa transmitido ao vivo pela televisão, a de um estafante animador de programa dominical de auditório, as de duas fofoqueiras que maldiziam a vida dos vizinhos, a de um advogado inescrupuloso que acabara de inocentar um estuprador, a de uma recepcionista que o atendeu grosseiramente em uma lanchonete, as de um casal que estava brigando e discutindo a relação em público, a de um professor que estava ralhando com seus alunos na porta de um cursinho, afirmando que reprovaria a todos, a de um cantor brega que desafinou bem na hora em que ele entrou em uma casa noturna na happy hour para tomar uns tragos. Claro que a notícia do ceifador de línguas havia se espalhado pela cidade, devido à profusão de sangue e mortes provocadas pelo homem em tão pouco tempo. Todas aquelas ações haviam acontecido do nascer do sol até o início noite. A polícia, um tanto quanto atônita, passou a perseguir as pistas do criminoso, que apesar de ser descrito como extremamente forte e corpulento, se movia lépido pelas ruas. Bailarino e compositor de um balé macabro, ele ia deixando um rastro de padecimentos e barbaridades por onde passava. E suas assinaturas eram, além das atrocidades, a aflição e a quietude que ia causando não só pelo temor, mas pelas línguas cortadas das suas vítimas que choravam suas mágoas sem palavras até a morte.

As emissoras de rádio e televisão cobriram e divulgaram a onda de assassinatos e línguas trinchadas quase que em tempo real, o que fez especialistas tentarem traçar o perfil psicológico do criminoso: segundo eles tratava-se de um psicopata da pior espécie. Desumano, insensível, um homem que se fizera pacato e subalterno, apresentara-se tímido e covarde a vida toda, mas que de repente tivera aflorado por algum motivo ainda desconhecido o seu lado negativo onde acumulara extremo ódio, provavelmente devido a anos de humilhações e frustrações. O que os analistas podiam dizer é que aquele homem parecia não ter nada a perder, não mostrava preocupação em se esconder, não temia a prisão ou a morte e era uma bomba permanentemente acionada para explosão ao menor estímulo. Tudo isso o tornava extremamente perigoso e acabava dificultando a sua localização. O que os intrigava mais do que a motivação dos crimes, eram as línguas ceifadas de todas as bocas. Tudo começara com a esposa, passara por pessoas comuns como o dono do bar, o cobrador do ônibus e o vendedor. Depois pelo patrão e os colegas de trabalho. Na seqüência, com a exceção do gerente do banco, nenhuma das outras pessoas atacadas havia tido contato anterior com o carrasco: religioso, político, advogado, cronista esportivo, animador de TV, professor, fofoqueiras, casal, garçonete, músico. Os analistas conjecturaram, sem saber que o homem era totalmente desocupado de discernimento, que alguma mensagem aquela mente doentia estava tentando passar. Talvez ele estivesse obcecado querendo calar a boca da sociedade e das suas instituições consideradas mais importantes. Eles não faziam idéia que o homem descobrira que ia morrer amanhã.

O HOMEM QUE IA MORRER DEPOIS DE AMANHÃ - Parte 5

O boato das conclusões dos peritos espalhou-se como uma praga de todas as maneiras: inicialmente propagado pela imprensa e depois disseminado pela internet, viajou pelos celulares, passeou boca a boca pelas que ainda tinham língua, praticamente provocando um toque de recolher em todas as falas. Receosa de ter o principal órgão articulador das palavras separado em dois por alguma palavra julgada indecente ou inadequada pelo homem que ia morrer amanhã, toda a população se autocensurou. Foi um voto de silêncio geral e absoluto. As transmissões de rádio foram cessando, porque nenhum locutor ou repórter ousava arriscar comentários. Na televisão a cobertura passou a ser feita só com imagens e letreiros. Ninguém mais se atreveu a emitir opinião sobre qualquer assunto, declamar uma poesia, cantar uma música, contar uma piada, gritar, falar um palavrão, rezar, dizer juras de amor, dar beijo de língua, filosofar ou exprimir a maior besteira de todos os tempos. A comunicação entre as pessoas passou a ser um risco. Todos meditavam cem vezes antes de proferir uma simples frase ou um corriqueiro cumprimento. Bebês não choravam, cães não latiam, gatos não miavam e os pássaros migraram para o norte para não soltarem os seus trinados por ali. O medo da tesoura assassina emudeceu totalmente a cidade e até os policiais só se falavam via rádio utilizando códigos próprios, para não ofender ou aumentar a ira do homem que ia morrer amanhã, que a essa altura estava sendo caçado por todos os cantos.

Alheio a essa fama de censor crítico do vernáculo, das conversas, interjeições, sentenças, exclamações, afirmações, questionamentos, ponderações, relatos, definições e verbalizações genéricas, o homem que ia morrer amanhã foi percorrendo o silêncio opressivo da cidade sem se importar com os seus possíveis algozes. Após cumprir a missão de fechar todas as malditas e malévolas bocas daquela metrópole, segundo os seus particulares critérios, estava perambulando no meio da noite por uma rua pouco movimentada, pois a maioria das pessoas ficara escondida dentro de suas residências, quando viu uma plaquinha na porta de uma casa humilde com os dizeres: “Mãe Piná conta o seu futuro”. Ele sorriu e tocou a campainha sem pensar, porque era uma mente privada de inteligência. Uma senhora com cara de cigana e lenço na cabeça o atendeu gentilmente, mandou que ele entrasse numa sala escura e se sentasse. A cigana, totalmente desligada do mundo, deu o preço da consulta e ele pagou adiantado, mesmo porque já sabia que ia morrer amanhã e só estava ali para confirmar.

A vidente se concentrou firmemente, jogou as suas cartas e disse ter certeza de que a vida do homem que ia morrer amanhã iria mudar da água para o vinho. Ela via uma grande sorte, um prêmio de loteria e perguntou se ele havia comprado um bilhete ou algo assim Ele lembrou na hora que, já que ia morrer, não havia conferido o jogo da mega sena onde fazia uma fezinha toda semana. Só faltava essa. Morrer rico sem usufruir da sua fortuna. Entretanto a cigana fechou o semblante e avisou-o que via também grandes dificuldades para ele receber esse prêmio, pois ela o assistia no futuro breve fugindo de muitas pessoas sem conseguir entender o motivo. Só sabia que ele estava numa grande enrascada, mas milionário. Sem pensar, porque era totalmente desmaterializado de razão, o homem que ia morrer amanhã pegou na mesa vários incensos em brasa e os apagou nas mãos e braços da cigana que julgou charlatã. Após ela gritar intimidada, cortou com a sanguinolenta tesoura a língua da vidente que nunca mais contaria as suas adivinhações para gente nenhuma. Para terminar, enfiou as lâminas da tesoura no meio da testa da mulher. Esta poderia ter tido muitas premonições acertadas ao longo da carreira mediúnica, mas não tinha previsto o perigo, nem desconfiado da proximidade do seu próprio fim.

Cansado de cortar as más línguas e tapar tantas bocas despudoradas, o homem apavorou-se subitamente porque um novo pensamento apoderou-se do seu cérebro, alastrando o pânico por todo o seu corpo que começou a tremer descontroladamente. Esse novo pensamento martelou nos seus ouvidos estas palavras que explodiram e ficaram ecoando em sua cabeça ausente de ondas cerebrais: - a vidente estava certa seu imbecil!

O HOMEM QUE IA MORRER DEPOIS DE AMANHÃ - Epílogo

Amedrontado e agora na dúvida se realmente ia morrer amanhã, o homem saiu correndo pelas ruas sem rumo. Transformado numa grande bola humana desgovernada e sem direção definida, ia abalroando e derrubando os poucos transeuntes que atravessavam o seu caminho. Seguia destroçando com a força do seu peso todos os objetos que encontrava pela frente, até que parou, sentou-se no banco de uma praça e num esforço cerebral hercúleo, argumentou com o pensamento novo que o pensamento anterior tinha lhe dado a certeza ontem de que ele iria morrer amanhã. Quase apoplético por essa desmesurada e difícil tentativa de pensar, uma capacidade que fora se atrofiando até desaparecer totalmente da sua cabeça, perguntou como é que uma coisa dessas poderia mudar assim sem mais nem menos?

O pensamento novo dominando totalmente a mente do homem, porque ela era um espaço circunscrito repleto de nada, disse que não tinha a ver com outros pensamentos, que aquele era um pensamento único, absoluto e independente, que o balofo e sua estupidez deveriam ter evitado sair fazendo besteiras, cortando as línguas das pessoas. Que direito tinha o monstruoso homem de censurar as falas dos outros, mesmo se fossem xingamentos, ofensas, mentiras, calúnias e difamações? Mas o pior é que eram verdades. Era de conhecimento geral, continuou inexorável e sem compaixão o pensamento novo, que ele era realmente um brocha, um monte de banhas, um inábil, um safado irresponsável, portanto a maioria das línguas tinha despejado sobre ele a realidade dos fatos que ele quisera sempre esconder e nunca tivera coragem de refutar. E muito menos de alterar. Além disso, o homem que ia morrer amanhã tinha cortado também todas as outras línguas que nem haviam se referido a ele diretamente e que foram rasgadas por mero capricho, por discordâncias de pensamento de alguém que nem pensar pensava! Se tanto, ele tinha um primitivo instinto. Uma manifestação inferior de impulsos que comandavam o seu comportamento sem padrão. O homem normalmente afastado de elucubrações começou a ter milhões de pensamentos zumbindo ao mesmo tempo, o que congestionou a sua cabeça. Foram tantos que ele saiu encarniçado dali, já que não podia cortar a língua desse pensamento que o estava transtornando.

Os pensamentos invasores e perversos o acompanharam em sua fuga, jogando em sua cara sem parar e sem censura a verdade de sua existência até aquele momento desprezível e que se tornara ainda mais execrável. Tentando raciocinar, numa última tentativa de recuperar o seu cérebro deletado, o homem que ia morrer amanhã chegou a achar que houvera feito um bem ao encerrar palavras de tantas línguas e bocas cheias de sentimentos vazios, armas trevosas da maldade, instrumentos da podridão interior dos seres mais rasteiros e sem dignidade para viverem numa sociedade humana e justa.

Mas finalmente vencido pelos argumentos de tantos pensamentos contrários, concordou com eles perguntando-se quem era ele afinal? Algum deus para definir o direito ao silêncio ou a palavra, vida ou morte e o que era digno ou podre, certo ou errado? Ele era um pária, um homem que não pensava. Um monte de banhas a sustentar uma cabeça inócua que havia surtado. Acreditando que era um homem que ia morrer amanhã, ele foi procurar no seu destino o encontro com a mulher de foice nas mãos.

Já era quase meia noite quando o homem que ia morrer amanhã descobriu uma funerária, entrou atabalhoado pela porta e passou a procurar algum enorme caixão onde pudesse acomodar todos os seus muitos quilos de parvalhice. O funcionário estava adormecido, pois não houvera clientes até aquele instante, o que facilitou para o despojado de pensamentos fuçar a casa toda. Mas, decepcionado, não localizou o que desejava. Perto de desistir, chegou ao quintal e encontrou lá um único ataúde adequado, abandonado no chão nos fundos do terreno, jogado em meio ao mato. Acomodou-se, trancando-se no escuro e abafado esquife na esperança de que a morte fosse buscá-lo amanhã, que era dali a pouco. Não era possível ele ter sido enganado. Ele tinha que morrer, ele tinha que bater as botas, passar desta para melhor, apagar, entregar a alma a Deus ou ao diabo, ir para o beleléu, dizer adeus ao mundo, ir para a cidade dos pés juntos, esticar as canelas, ir comer grama pela raiz, largar a casca, dar o couro às varas, tomar o chá da meia noite, desencarnar, empacotar, fechar os olhos, vestir o pijama de madeira, pifar, virar presunto, ir para o além, dar o último suspiro, chegar às últimas, estar pronto, descer a terra, expirar, encontrar o criador, virar adubo, virar comida de minhoca, ir a sete palmos...

O pensamento anterior que havia causado toda aquela revolução lhe prometendo o descanso eterno tinha sido claro e convincente, para ele muito mais do que o novo, deseducado, que colocara incertezas nesse acontecimento trazendo milhões de outros pensamentos perturbadores. O desgastado homem fechou os olhos no caixão e decidiu não permitir que qualquer pensamento voltasse a tomar o seu cérebro. Ficaria lá de braços cruzados, imóvel, cego, naquele inferno tenebroso e mudo respirando arfante, até que acabasse o ar ou chegasse o dia de amanhã trazendo a morte.

Assim agiu o homem que ia morrer amanhã, enquanto lá fora imperava o silêncio de uma cidade inteira acuada por não saber o que dizer. Todos permaneceram quietos, ouvindo apenas o uivo do vento na madrugada e aguardando o desfecho da história.

FIM

O MENDIGO

Abriu os olhos, não reconheceu a paisagem. Estava coberto de papelões e com muito frio. Uma garrafa de Velho Barreiro descansava vazia ao seu lado. Pelas pontadas no fígado devia ter passado a noite toda sugando essa aguardente. Viu-se em trajes maltrapilhos, sujo, cabelo e barba enormes. O mau cheiro que exalava lhe deu náuseas. Não resistiu e tentou vomitar, mas o estômago não tinha o que dispensar, pois não se alimentava há dias. Uma ferida purulenta na perna começou a latejar nesse instante. O sangue já seco em volta dessa ferida o fazia inteiro dor, estava totalmente machucado. Mas quem era esse que vestia o seu corpo combalido, se ele era um alto executivo bem sucedido que trabalhava há anos numa multinacional italiana? O que estava fazendo assim nele mesmo? Fora raptado? Assaltado? Sofrido um acidente? De repente lembrou ser casado com uma linda mulher de cabelos ruivos e curtos. Um casamento numa crise só, mas continuavam juntos por causa de grana e dos filhos. Filhos? Lembrou também que tinha filhos! Uma menina e um menino. Jovens. O que aconteceu comigo, perguntou-se? Por que se transformara em mendigo? Por que não recordava o que acontecera se sabia quem era? Tentou se levantar, não conseguiu apoio no braço direito e caiu. Apavorado e de olhos esbugalhados gritou: - cadê o meu braço direito?

Aprumou-se com grande esforço, encontrava-se ainda completamente embriagado. Não agüentou, ficou de joelhos e deitou novamente. Era o nascer do dia e pessoas começavam a transitar suas indiferenças pelo chão em que se prostrara. Insistente, conseguiu levantar a podridão inteira. Como chegara a esse estado calamitoso? Onde perdera sucesso, bens, família, dignidade e o braço direito? Será que tinha se drogado? Ou teria enlouquecido desaparecendo com passos desconexos pelo mundo? Uma confusão total martelava sua cabeça que girava embaralhando os pensamentos. Resolveu ir andando sem destino, já que o momento não lhe apresentava sentido. Chegou a uma ponte e uma vontade imensa de acabar com a vida e o sofrimento o assomou. Achava que não tendo religião não ia pra céu ou inferno nenhum. Não ficaria na memória de ninguém, porque no estado em que estava não era quem tinha sido. Olhou para baixo e falou baixinho que o seu corpo iria encontrar descanso nesse rio que navegava esgoto. Parou bem à beira da ponte. O fedor do rio minimizou o mau cheiro que sentia dele próprio. Não tinha medo e não precisava coragem porque nele não moravam sentimentos. Abriu o braço esquerdo e o cotoco. Uma cena horrível vista por qualquer ângulo. Um ser em pedaços por dentro e por fora prestes a se integrar ao rio que não corria mais água. Só morte seguia a sua corrente. Fechou os olhos e antes de pular recordou um dia em que acordara muito cedo na suíte principal da sua mansão, com a esposa ruiva nua na cama. Forçando a mente começou a rememorar os fatos.

O MENDIGO - Parte 2

Foram ele e a esposa ruiva em uma festa. A mulher estava deslumbrante num vestido vermelho, longo e colado ao corpo. O decote generoso valorizava seus seios desejáveis. O colar dourado em seu pescoço reluzia realçado pelo corte de cabelo curtinho e modernoso que a fazia parecer uma garota, apesar dos seus 35 anos. Linda, dona de um corpo maravilhoso, fascinou a todos nessa festa realizada numa casa noturna privê. Foi cobiçada por todos os homens ali presentes. José ficou encucado com um sumiço de mais ou menos uma hora que ela deu ao longo da noite, enquanto ele enchia a cara de wisky. Procurou pelo salão e nada. Chegou até a pista de dança, pois ela adorava sacolejar a noite inteira, mas não a viu. Foi até o jardim onde vários casais namoravam de forma acintosamente sensual, beirando o pornográfico, como diriam se passassem por ali as mumificadas Senhoras de Santana. Na piscina alguns se refrescavam de roupas íntimas, mas ela nem sabia nadar. Subiu para o segundo andar pela longa escada de madeira com tapete azul no meio dos degraus. Nesse andar haviam várias salas fechadas e dois enormes toaletes com uma ala comum. Entrou nessa ala comum, apoiou o copo no balcão e acendeu um cigarro. Uma morena que lavava as mãos frente ao espelho pediu-lhe um. Ele o deu a ela e educadamente o acendeu. Ela tragou profundamente olhando-o nos olhos, soltou a fumaça e como ele nada disse, virou as costas e se retirou apressadamente.
Subitamente entraram ali a ruiva e dois homens, os três com sonoras gargalhadas. Ela nem viu José. Nenhum dos três o viu. Ele ficou mais de lado ainda para passar totalmente despercebido. Tinham várias pessoas nesse local o que o ajudou a ficar encoberto. Os caras foram para o reservado masculino e a ruiva para o feminino. Depois de um tempo os três se reencontraram na área comum. Chamou a atenção de José que o botão do vestido da esposa estava aberto próximo da nuca. Um dos caras também percebeu e a puxou pra trás, abotoou o botão e deu uma lambida no pescoço ruivo. O outro cara veio pela frente dela e enquanto o amigo a segurava por trás e lambia o pescoço da mulher, colocou as mãos ao lado de cada um dos seios dela acariciando-os delicadamente. Os bicos enrijeceram na hora, ela não usava soutien, então esse rapaz que estava na frente a beijou na boca, um beijo daqueles de cinema. Ela, recheio mais do que perfeito para a excitação dos rapazes, ficou toda arrepiada na presença de um monte de gente que nem ligou para eles. Só José, anestesiado de álcool e anfetaminas, enrubesceu escondido no canto. Deu um grande gole no seu whisky, mas já fervia por dentro.

Os três saíram, José os seguiu a tempo de ver que entraram numa das salas. Não acreditava no que estava acontecendo. A sua mulher estivera aquele tempo todo com dois desconhecidos. Era óbvio que algo tinha rolado entre eles, que para ela não deviam mais ser nem um pouco estranhos. Mas não era possível, mesmo com o casamento em crise, sua mulher traí-lo descaradamente com dois homens numa festa mesmo com ele, o marido, presente. Só podia ser efeito da mistura de álcool e droga, um devaneio da sua cabeça, ele pensou. Aguardou uns instantes e abriu a porta da sala suavemente. Estava escura. Entrou, pois ouviu vozes, suspiros e gemidos vindos de uma sala anexa. A porta dessa outra sala estava somente encostada e na penumbra viu a ruiva totalmente nua sendo consumida avidamente pelos dois homens. Ela urrava de prazer, batia nos dois e apanhava também. Estava alucinada de tesão e pedia mais, mais, mais... José tonteou e se apoiou na parede bem na hora em que sua esposa atingiu o orgasmo e foi brindada simultaneamente com o gozo dos dois jovens.

O MENDIGO - Parte 3

José saiu daquela sala em frangalhos. Não acreditava no que tinha visto. Desceu e sentou-se ao balcão pedindo mais um whisky. Após séculos a ruiva desceu e sentou-se com ele como se nada tivesse acontecido. Ela exalava sexo. Ele ainda podia ouvir os gritos de prazer da sua mulher sendo possuída por aqueles dois. Sentia o cheiro dos homens que tinham estado dentro dela. Incrivelmente calma ela pediu para irem embora. Entraram na Ferrari vermelha sem palavras. Ele notou a expressão de satisfação da sua mulher. Pudera, tinha passado horas satisfazendo sua libido, seu insaciável apetite sexual com os jovens. E José não conseguia falar nada. Nem ele entendia o porquê. Já em casa foram para o quarto e ele teve uma vontade incontrolável de transar com a esposa infiel. Ela falou que esperasse, pois ia tomar um banho. Voltou toda perfumada, despida e deitou-se oferecida ao lado dele. Ele olhou aquele corpo delicioso a sua disposição, mas por mais que tentasse foi impossível voltar a se excitar. Brochou pela primeira vez na vida, justo quando queria mostrar que era mais homem do que os dois jovens que tinham feito a sua mulher pirar de maneira tão inconseqüente na festa. A ruiva, decepcionada como se não tivesse feito sexo de forma tão maluca recentemente, apagou a luz, virou para o lado e dormiu o sono dos justos.

Mais tarde José perambulou pela casa feito um sonâmbulo sem saber o que fazer nem como encararia a sua esposa devassa e adúltera a partir daquela data, mas principalmente como se encararia ao espelho, já que na verdade consentira com toda aquela situação no momento em que assistira a tudo sem interferir, sem fazer um escândalo indignado, sem ameaçar matar nenhum dos três. Pior, não havia mencionado à sua linda mulher o fato que testemunhara e não pedira a ela nenhuma explicação sobre o seu sumiço. Ao amanhecer, absorto se cortou feio fazendo a barba, porque ao se fitar no espelho viu as caras sorridentes dos dois moleques que tinham comido a sua mulher. Colocou um enorme esparadrapo no queixo e foi tomar uma ducha quente para começar o novo dia. Os gemidos da esposa transando com os dois filhos da puta feita uma gata no cio, não saíam da sua cabeça. Estava todo ensaboado quando acabou a eletricidade. Que hora para um apagão. Terminou o banho com uma ducha gelada, o que o deixou irritadíssimo. Colocando seu terno Pierre Cardin olhou para o saboroso corpo nu da mulher, um convite para agarrá-la e comê-la toda. Afrouxou levemente a gravata e pensou em pular em cima dela, cobri-la de tapas e penetrá-la de frente, de costas, em todas as posições que pudesse inventar. Ficou com medo de falhar de novo, desistiu, apertou bem a gravata e desceu para tomar café.

Ainda não havia empregados na casa e para não perder seu precioso tempo fez apenas um sanduíche de queijo branco. Começou a ler as notícias do dia como fazia habitualmente, quando notou um bilhete em cima da mesa. Era da sua filha de 17 anos avisando que viajara para a Holanda, onde passaria a morar com um amigo, um negão de trancinhas rastafári que ele não suportava. Calma, ele não era racista não, mas o moço era um vagabundo que não trabalhava, não estudava, não tinha cultura e vivia com uma flauta pra cima e pra baixo. Deu-lhe um ódio mortal quando ele leu que a menina mandava beijos para a mãe e para o irmão e que ela e o negão tinham levado os euros do cofre. Espumou de ódio. Não bastava ao negão ter desvirginado e fugido com a ruivinha, tinha deflorado também o cofre. Pensou em chamar a polícia, mas logo mudou de idéia. Não queria explicar a origem dos euros, nem dos reais e dólares e cheques e ações e jóias que ainda estavam no cofre. Quando tirasse férias iria à Holanda, traria a filha pelas orelhas e daria um jeito de tirar o flautista do caminho dela, imaginou decidido.

Pegou a sua Ferrari dirigindo-se à empresa da qual era vice-presidente da área financeira. Muitos compromissos importantes o aguardavam neste dia, inclusive receber a visita de um ministro de estado italiano na parte matinal. Analisaria depois a documentação para várias licitações e concorrências em que a empresa estaria participando. Às treze horas iria a um almoço patrocinado pela federação nacional das indústrias, com os principais executivos brasileiros e a partir das dezesseis horas terminaria suas tarefas com a reunião do conselho administrativo da empresa, onde teria que apresentar relatórios, conclusões e pareceres sobre novos investimentos, além de justificar vários que não tinham resultado bem para os interesses da companhia. Tinha agendada uma entrevista noturna à TV Globo, que queria a sua opinião sobre subsídios agrícolas e restrições impostas pelos países europeus aos produtos exportados pelo Brasil, mas desmarcaria recusando comentários. Era um homem discreto, nunca aparecia, seu rosto era uma incógnita ao público em geral. Era também bem distraído, porque avançou o sinal vermelho e sua Ferrari foi colhida por um Land Rover bem no meio de um cruzamento da Avenida Faria Lima. O automóvel recebeu o impacto e saiu dando piruetas, destruindo-se e soltando pedaços a cada volta. José foi-se batendo todo enquanto pensava o que mais poderia lhe acontecer de ruim.

O MENDIGO - Parte 4

Foi levado ao hospital Albert Einstein, integrante do seu convênio médico, repleto de escoriações, com cortes profundos na perna, rosto e cabeça, quase duzentos pontos no total, fora o esparadrapo no queixo que tinha sido trocado, mas agora ele nem chamava a atenção no meio de tantos curativos. Entretanto o seu estado geral era bom. Nada se quebrara em seu corpo. Vários compromissos já tinham ido para o espaço, mas daria para chegar tranquilamente a tempo da reunião do conselho. Estava em observação, mas devido ao ótimo relacionamento dele com o diretor do hospital, assinou um termo de responsabilidade e recebeu alta. Não sem antes receber a visita de policiais que lhe entregaram um boletim de ocorrência, onde era apontado como o responsável pelo acidente em que três pessoas tinham perdido a vida. Pelos exames a que o submeteram fora constatado que ele estava alcoolizado e drogado, bebera e usara drogas até quase o amanhecer, portanto a sua habilitação estava retida e ainda enfrentaria processo por homicídio doloso.

Ao sair do hospital recebeu no celular uma ligação do filho de 19 anos. O garoto informava que tinha entregado a Pajero da família a uns traficantes de drogas a quem ele estava devendo muito dinheiro. Falou para o pai tomar cuidado porque ele tinha esquecido o documento da perua no porta-luvas e certamente esses bandidos barras pesadas iriam cobrar dele o restante. Avisou ainda que levara os dólares do cofre. Achava melhor viajar para os Estados Unidos e sumir por um tempo até as coisas acalmarem. Pediu para o pai mandar beijos para a mãe e para a irmã. Mandaria notícias. Disse ainda, com a maior cara de pau, para o pai não se preocupar que ele saberia se virar muito bem. José ficou tão chocado com a conversa que outra vez não conseguiu reagir. A sua vida estava tomando um rumo tão complicado à sua revelia que ele não estava compreendendo as várias situações difíceis se sucedendo. Atravessou a rua à procura de um táxi, pelo menos queria garantir presença na importante reunião na empresa. Mesmo aparecendo totalmente estropiado, demonstraria o quanto considerava prioritário o trabalho em sua vida. Foi andando e ao passar por um mendigo jogado na calçada, constatou que tinha gente com muito menos sorte do que ele. Tirou uma nota de dez reais do bolso e a entregou ao pobre coitado que agradeceu dizendo boa sorte irmão, deus te abençoe. Chegou ao ponto de táxi e claro que não havia nenhum carro disponível naquele momento.

O MENDIGO - Parte 5

Depois de meia hora esperando um táxi pegou justo um em que o motorista não parava de falar. Ele todo machucado e preocupado com a reunião estava enfastiado com aquele papo imbecil. Chegando ao destino pagou o táxi e foi entrando pela porta principal da companhia, na direção do elevador privativo dos diretores. Excepcionalmente o seu crachá não liberou a catraca para ele acessar o saguão. Isso já era demais. Aos berros mandou chamarem o responsável pelo RH. Depois de longo tempo veio o gerente careca, de óculos e suspensórios. Vinha carregando uma caixa com todos os pertences pessoais que estavam na sala do vice-presidente de finanças, ele, José. Entregou a José uma carta de demissão sumária por justa causa e uma intimação comunicando que por desvio de verbas, desfalques, negociações fraudulentas e subornos em licitações, a empresa movera um processo contra ele. O velho gerente do Rh, tentando dar uma força, comentou com José que ele havia sido denunciado pelo próprio assistente. Ficou pasmo com mais esse episódio esdrúxulo, pois se julgava inocente desses crimes. O máximo que fizera fora receber indevidamente grandes comissões de negócios, presentes de fornecedores e concorrentes. Era errado, claro, mas crimes menos graves do que as falcatruas feitas por outros diretores. Era uma armação e ele entrara de “laranja” no caso. Naquela situação só lhe restava procurar um ótimo advogado e partir para a briga. Pegou a caixa e retirou-se transtornado.

Andou pela rua desesperado, tentando conversar com alguns amigos pelo celular. Nenhum o atendeu, pois eram todos ex-colegas de trabalho. Aliás, a vida toda ele só se dedicara com afinco ao trabalho, por isso a sua família e o seu casamento tinham falido. Precisando desabafar, relutou, relutou, mas resolveu ligar para a esposa desleal, que nem deixou ele falar nada, foi logo expondo que queria a separação em caráter irrevogável, portanto tinha entrado com uma ação de divórcio litigioso há meses. Um oficial de justiça entregaria a ele uma citação proibindo-o de chegar próximo da residência deles, decisão do juiz porque ela alegara maus tratos e agressões a ela e aos filhos, além de afirmar que ele estaria dilapidando o patrimônio da família em jogatinas. Ela tinha vendido as ações e as jóias e depositado o dinheiro junto com toda grana existente no cofre numa conta aberta no exterior. Avisou que na ação judicial ela reivindicava a residência, o sítio, a casa na praia, o Renault, a guarda dos filhos e dos cachorros. Era para ele ficar com a Ferrari, a Pajero e todo o dinheiro existente na conta no banco, que era uma fortuna. Aliás, ela recomendava a ele ver qual o problema com o banco, pois o gerente avisara que a conta fora bloqueada pela justiça e ela nem tinha se interessado em saber os motivos, era outro caso. Sugeriu que ele fosse para um flat que ela providenciaria o envio das roupas dele. Terminou comunicando que ela e dois jovens amigos iriam viajar num tour pela América Latina. E desligou.

José, completamente atordoado, sentou no meio fio e começou a chorar. Era o fim de tudo. Abandonado, roubado e enganado pela família e pela empresa, chegara ao fundo do poço. Agora sim, nada pior do que isso poderia acontecer, imaginava ele, quando ouviu gritos histéricos. O banco em frente sofria um assalto bem naquela hora. Sirenes da polícia ensurdeceram os seus ouvidos. Os soldados desceram das viaturas atirando e os assaltantes responderam com armas de grossos calibres. Era bala pra cima e pra baixo, gritaria, vidros quebrando, gente correndo, gente se escondendo, sangue pra todo lado, cenas de horror. Em meio ao tiroteio, José, que chorara copiosamente, se acalmara se destacando no meio daquela balbúrdia. Já sabia que nem adiantaria fugir, ficou aguardando as balas no seu corpo já tremendamente debilitado. Voltou à consciência numa maca depositada no chão frio de um hospital público. Os assaltantes tinham roubado sua carteira com todos os documentos, dinheiro, cheques e cartões. Era o que faltava, ele virar um José ninguém. Estava ali há três dias, duas balas o tinham alvejado. A sisuda enfermeira explicou que era ótimo ele ter acordado para liberar a maca a outro indigente. Ele pensou vários palavrões, mas achou melhor nem responder e guardar suas forças. Um dia depois recebeu alta, na verdade foi expulso do hospital pela enfermeira, agora carregando os curativos do acidente automobilístico e os dos projéteis do assalto, fora o do corte da gilete e sem falar que sua alma muito, muito ferida precisava urgentes cuidados.

O MENDIGO - Parte 6

Meio que se arrastando José foi capengando pelas ruas, barba crescida, cabelos desgrenhados, o terno completamente amarrotado apresentando os furos da bala e alguns rasgos. José naquele momento era um verdadeiro curativo ambulante e ao passar por um boteco colocou as mãos no bolso encontrando uma salvadora nota de 20 reais, tudo o que restava ao ex-executivo milionário brocha e corno que não tinha mais Ferrari, Pajero, Renault, residência, sítio, casa na praia, conta no banco, dinheiro no cofre, jóias, cartões, documentos, cheques, ações, habilitação, emprego, amigos, cachorros, filhos e esposa. Em compensação tinha conquistado variadas cicatrizes pelo corpo todo, um processo de divórcio litigioso, um processo de homicídio doloso pela morte de três pessoas no acidente com a Ferrari, outro processo por roubo e desvio de milhões de dólares da empresa. De quebra o filho o tinha agraciado com uns traficantes que iriam lhe cobrar um dinheiro que ele não teria como pagar. Entrou no bar, sentou-se num banquinho ao lado de uma loira oxigenada, pediu um whisky e uma coxinha para enganar o estômago. Sem querer olhou para a bunda da loira, quando sentiu uma mãozona nas costas e se virou. Um enorme cidadão com cara de malfeitor e braços que pareciam dois postes, o chamou de folgado e perguntou a ele se estava a fim de apanhar mexendo com a loira dele. Ele olhou para a oxigenada, lembrou-se dos caras comendo a sua ruiva e desandou a gargalhar descontroladamente. Tomou um soco no olho que inchou na hora, outro soco quebrou o seu nariz e um definitivo que o fez perder dois dos dentes da frente. Depois foi jogado num terreno baldio esvaindo-se em sangue.

Acordou com o sol a pino no rosto. Arrebentado, destruído, rasgado, descalço e solitário, agora se auto denominava Zé Ninguém. Levantou-se e andou até uma praça pública que tinha uma fonte e um lago artificial. Lavou as feridas novas e antigas, agindo como um legítimo mendigo. Outro dia mesmo portava-se como um executivo milionário freqüentando os mais caros restaurantes. Hoje estava se banhando em público, sem nem se preocupar com os olhares de repulsa e reprovação. Após o banho de miserável voltou a caminhar até ouvir a brecada de um Ford Fox que quase o atropelou. Eram os traficantes cobrando a dívida do seu filho. Ele nem quis perder tempo explicando nada e avisou que não iria pagar e que se quisessem podiam bater nele a vontade. Obedientes, os meliantes bateram muito, principalmente nos seus machucados e o enfiaram no porta-malas do Fox. Passou o dia inteiro, incrédulo, se ralando dentro do porta-malas, quase sufocando e morrendo de sede. O carro parou noite avançada, ele reconheceu o cais do porto de Santos. Para que desaparecessem com ele foi colocado no porão de um navio de contrabandistas, que o deixaram a pão e água e cuja diversão era dar-lhe umas pancadas na falta de algo melhor para fazer durante a cansativa e demorada navegação. Não existiam mulheres a bordo, então alguns marinheiros o elegeram como “dama” para satisfação de perversões sexuais. Mesmo cheio de feridas, cicatrizes e hematomas, Zé Ninguém ainda teve que se submeter a todos os desejos sórdidos daqueles especialistas em sodomia. Nesse momento resolveu não pensar que tudo de ruim já tinha acontecido.

Como era um arquivo a ser eliminado, jogaram-no ao mar. Boiou de costas, sentindo-se mordido pelos habitantes do oceano até que aportou na praia de uma ilha deserta. Arrastou-se até a sombra de uma árvore e desmaiou de cansaço. Acordou de noite com muita fome. Olhou pra cima, não estava sob uma árvore e sim embaixo de uma bananeira. Perscrutou o horizonte, só vislumbrava bananeiras naquela ilha. Não era possível, ele detestava bananas, era alérgico a bananas, bananas desencadeavam nele uma diarréia monstruosa! Saiu dali chutando bananeiras, mato, areia, pedras. Deu urros, deu murros no ar. Não, ele não ia comer bananas e resolveu explorar a ilha no dia seguinte. Comeu mato naquela noite, ruminando feito um boi magro. A exploração não trouxe nada de novo, aquela devia ser a ilha do bananal. Não era possível, mas não encontrara nenhuma outra árvore frutífera naquele lugar. Displicentemente entrou em um lago para beber água, fazer suas necessidades fisiológicas e se refrescar. Depois de um tempo foi mexer numa madeira que boiava perto, mas não era uma madeira. Era um jacaré que ágil mordeu seu braço direito. Lutou ferozmente com o jacaré como se o réptil fosse os dois caras que comeram a ruiva, ou como se ele fosse a própria ruiva traiçoeira, ou os filhos larápios, o negão rastafári, os fraudadores da empresa, a enfermeira negligente, o assistente que tinha feito a denúncia falsa, os traficantes que o espancaram, os contrabandistas que o curraram no navio, os bandidos que o tinham assaltado ou o troglodita que batera nele.

Conseguiu se safar do jacaré com o braço direito detonado jorrando sangue. Usando fios de mato e plantas, amarrou o braço e estancou a hemorragia. Uma dor alucinante o percorreu inteiro. Correu para a praia e desmaiou. Acordou sem dor, a infecção era tamanha que nada sentia. A fome gigantesca o fez apelar e comer bananas. Comeu um cacho inteiro, o que lhe deu a maior diarréia de todos os tempos. O pior é que tendo que ir ao mar tantas vezes o sal enrugou a sua pele tornando-a absurdamente flácida. Não parecia mais um mendigo, nem um ser humano ele parecia agora. Mas valente e querendo vingança, mesmo com o braço daquele jeito construiu uma balsa rudimentar. Quando ela ficou pronta tomou uma decisão drástica. Teria que cortar parte do braço para a infecção não se espalhar ou ele morreria na empreitada. Atravessaria o oceano sem ter a menor noção ou preparo para uma aventura náutica dessa envergadura, não queria aumentar os riscos de errar. Quem mandou nunca ter comprado uma lancha, pensou arrependido. Lascou madeira, afiou pedras e fez uma machadinha. Aproximava a machadinha do braço e parava, aproximava e parava. Tomava fôlego, aproximava e parava, aproximava e parava... Até que não parou e cortou o braço friamente berrando de dor. Estancou o sangue, colocou o braço no fogo feito um Rambo e desmaiou outra vez. Depois de dias comendo bananas e defecando bananas sem parar, o cotoco tinha cicatrizado. Cabeludo, barbado, estropiado e sem um braço, colocou a balsa no mar e esperou a corrente mandá-lo para algum lugar.

O MENDIGO - Epílogo

Uma tempestade lambia o rosto de Zé Ninguém quando ele abriu os olhos assustado e avistou terra próxima. Prendeu-se na balsa com os fios de mato distinguindo no horizonte uma praia e prédios, era cidade grande. A tormenta o levou para as pedras, onde a balsa se partiu ao meio e onde ele se raspou todo, abrindo uma ferida enorme na perna. Mais uma para sua coleção. Ao alcançar o raso ele nadou até a praia e não teve forças para sair de lá até o sol nascer e mostrar ao mundo que ele era um arremedo de homem. Quando teve forças rastejou pela cidade desconhecida procurando restos de comida no lixo. À frente de uma casa abandonada viu outro mendigo, este sem as duas pernas, pedindo esmolas. Próximo ao ancião uma garrafa de Velho Barreiro. Zé Ninguém se aproximou sorrateiro, roubou a garrafa, saiu correndo enquanto o velho aleijado xingava e pedia socorro. Ninguém acudiu o velho. Zé parou para comer o lixo que tinha achado como alimento e ficou lá sentado bebendo a pinga para aquecer a sua alma, recebendo esmolas e mordidas dos cães de rua com uma aparência horripilante, misto de mendigo, náufrago, animal e planta, repleto de chagas, lesões, contusões e sangue, aos trapos, sujo e fedendo. Com gente Zé Ninguém não mais se assemelhava.

O entardecer chegara rápido, mas ele ainda tinha mais de meia garrafa de pinga para atravessar a madrugada. Zé Ninguém não conseguia raciocinar uma forma de provar que não era mendigo. O álcool e as dores das úlceras lhe embotavam o cérebro. Será que o seu destino teria sido diferente se tivesse matado a esposa e os amantes? Um advogado sem escrúpulos alegaria forte emoção ou defesa da honra e ele estaria livre da ruiva, dos amantes e com dinheiro para se safar das outras encrencas. Sim, a festa naquela madrugada alterara todo o seu destino. Maldita hora em que ele tomara aquele coquetel de whisky e pedrinhas que o deixara inerte. Pensou mais um pouco e discordou dele mesmo. Isso era moralismo barato. Todo mundo naquele evento tinha bebido e se drogado fartamente. Mas mesmo se os rumos do destino não mudassem, deveria no mínimo ter coberto a ruiva e os amantes de bordoada. Não poderia ter ficado omisso. Tinha sido um verdadeiro banana e ele detestava bananas. Tardiamente colérico permaneceu quieto até que sentiu um chute no peito. Abriu os olhos e viu uma menininha burguesa pegar as moedas arduamente esmoladas e ainda o chamar de vagabundo. Ele tentou balbuciar uma explicação dizendo que era um milionário formado em administração de empresas com doutorado em economia pela Universidade de Harvard, mas sua língua enrolou e ele não falou nada com nada. Também, o que isso iria interessar àquela menininha desgraçada? A única vez que ele tinha reagido a alguma coisa neste período fora ao jacaré e de forma bem ineficaz. O frio começou a aumentar, ele juntou uns gravetos para fazer uma fogueira e uns papelões para se proteger do vento gélido. Decidiu que no dia vindouro daria um basta àquele sofrimento de pária. Abraçado à garrafa adormeceu, só acordando de vez em quando para beber a sua companheira.

Abriu os olhos na beira da ponte, pronto para pular e acabar com tudo. Os inacreditáveis fatos tinham assim sido desenvolvidos, uma infinidade de acontecimentos inusitados que mudaram radicalmente a sua vida, pensou José. Se algum mendigo lhe tivesse feito uma narrativa semelhante, certamente ele teria rido muito e oferecido uma bebida ao demente pela criatividade. A sua mutação de José Empresário para José Ninguém tinha sido violenta e inexorável. Uma metamorfose para nenhum Gregor Samsa colocar defeito. Por fora a sua casca fora degradando numa velocidade estonteante, destruindo tudo aquilo que nele pudesse ser considerado belo ou próximo de uma aparência aceitável pela nossa sociedade falsa, superficial, desumana, traiçoeira e covarde. Mas por dentro o desastre havia sido ainda pior, por ter sido lento e extremamente cruel. Surpreendido pelas ações externas foi-se desfazendo interiormente pouco a pouco feito um leproso, perdendo orgulho, respeito por ele mesmo, consciência, memória, dignidade, inteligência, raciocínio, sentimentos, esperança, amor à vida. A cada momento uma parte daquilo que o tornava um homem fora caindo e ficando para trás. Regredira de homem a animal, de animal a vegetal e agora só lhe faltava voltar à condição de mineral, virando areia no fundo do rio.

 Olhou novamente para o rio, com total disposição para o gesto derradeiro. Conhecendo a estória, quem teria coragem de interferir e falar para ele não fazer aquilo? Aí então ouviu uma voz grave e firme, a voz de Deus lhe chamando... “filho... filho meu...” mesmo sendo um ateu convicto teve um rasgo de esperança e às lágrimas respondeu... “pai... meu pai... diga meu pai...” e a voz de Deus disse-lhe... “pula logo meu filho... pula sim que você é azarado demais para entrar em meu reino...” imediatamente o diabo interveio... “eu não quero essa alma penada aqui também”. Sabedor que não existia para ele o reino dos céus nem inferno e sem ter pra onde ir ou como viver, abriu o braço esquerdo e o cotoco direito como se fosse voar... Deu um impulso... A impressão é que ele tinha parado no ar, voando, mas... mas... mas não voou. Caiu que nem uma bomba com a cara no lodo, nos dejetos sólidos que faziam papel de água do rio, enfiando o nariz quebrado em toda aquela merda onde se afogou. Morte instantânea. Como não foram cobrar a sua alma, o mendigo ficou por ali vagando. Um Zé Ninguém indo e vindo eternamente pelo rio morto.

FIM