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sábado, 14 de dezembro de 2019

A BAILARINA, O BARMAN E O PIANISTA - Parte 4

A madrugada iniciou o seu declínio, mas o pianista continua inspiradíssimo tocando com uma sensibilidade ímpar. Interpretando“Moon River”, atinge no âmago os poucos clientes que estão no bar, além do garçom que fica até o último freguês. É muito aplaudido. Coloca ritmo e seu peculiar swing para executar a próxima música, “I’ve Got You Under My Skin”, sendo assistido com muita atenção. O velho barman, sempre solícito, fica com os olhos em revezamento entre os drinks, os clientes, o pianista e principalmente a bailarina e eu que estamos nos entendendo muito bem e namorando deliciosamente. Conversamos e nos beijamos sem parar, mas posso afirmar que a bailarina tem muito mais do que a enorme beleza que me deixa constrangido por uma mulher desse nível estar comigo e com minha ausência estética. Ela tem inteligência privilegiada, um humor irônico e sagaz que combina perfeitamente com o meu. Aliás, eu estou certo de que nós combinamos perfeitamente em tudo e minha mente começa novamente a acelerar pensamentos, embaralhando palavras e confundindo as que deveriam sair da minha boca. Só quero aquela mulher nua em meus braços. Eu sou só desejo e raciocínio não faz mais parte de mim. A bailarina trata de me trazer para a realidade dizendo já estar cansada e que é hora dela ir embora. Como raciocínio não faz parte de mim não reajo. Ela me dá mais um daqueles beijos que me percorre inteiro instantaneamente como cinco doses de Black Label nas veias, escreve o número do celular num guardanapo e fala ligue quando quiser na hora que quiser. Parte.

Faltam poucas horas para raiar o dia. A saída da bailarina deflagra a movimentação do bar rumo ao encerramento das atividades. Todos estão com suas missões cumpridas. O pianista latino fecha o instrumento e vai lanchar. O velho barman inicia a limpeza do balcão, ajeitando copos e garrafas. O garçom leva as contas para os últimos clientes e arruma mesas e cadeiras almejando merecido descanso. Eu tenho a sensação que há um desapontamento no ar porque eu deixei a bailarina ir embora sem nem esforço para ir junto, sem nem esforço para ela permanecer mais um pouco. Fico intimamente irritado com eles. Eles tinham acompanhado a estória desde a primeira noite, viram que eu namorei e conversei com a bailarina o tempo inteiro desta vez e não estavam satisfeitos com a minha performance? Eu estava me julgando um super-herói merecedor de medalhas e troféus e o barman, o pianista e até o garçom menosprezavam a minha atuação? A irritação íntima passa rapidamente para raiva e a raiva para um ódio incontrolável para comigo mesmo. Pego o guardanapo com o telefone da bailarina, lembrando que ela tinha dito para eu ligar quando e na hora em que eu quisesse. Então o quando para mim é agora. A hora, quatro e trinta e cinco da matina. Ela atende e eu falo que estou com saudades. Ela dá uma gargalhada marota e excitante com a voz rouca de whisky. Dá-me um endereço que eu nem anoto e rindo novamente fala para matarmos a saudade.

Não sei como chegar até aquele prédio situado em algum lugar da zona norte, mas o Palio sabe e me leva até lá. Matamos muito mais do que saudade. Quase nos matamos de sexo! A bailarina é uma máquina de prazer e eu, como um bom tarado romântico, não posso decepcionar a ela, a mim, ao Palio, ao pianista latino das mesuras, ao velho barman carcomido pelo tempo, aos clientes do bar, ao garçom que queria descanso, às mulheres da minha vida que eu tinha perdido anteriormente, à poesia, aos poetas, à música, aos compositores, à minha cabeça louca e desvairada, às minhas angústias, dúvidas, alegrias, tristezas e frustrações, aos homens que já tinham desejado sem sucesso aquela mulher fascinante, aos amores eternos, aos amores fugazes, às paixões malucas, a Deus que esculpira tal obra prima, aos meus bagunçados cabelos, a vocês que estão acompanhando esta estória doida e até àqueles que nunca irão ler estas linhas. Confesso que fui bem. Muito bem. Sobrevivi, tanto que estou aqui para comprovar. Não vou descrever detalhes de como é amar a bailarina, nem falar sobre ela nua, o corpo moreno tão perfeito que dá até desespero de olhar, mas afirmo que quando entrei nessa mulher, nada mais importou. Nem respirar, nem sexo, nem amor, nem beber, nem família, nem morte, nem poesia, nem trabalho, nem tempo, nem grana, nem saúde, nem alegria, nem vida. Tudo era pouco comparado a estar dentro da bailarina.

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