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sábado, 14 de dezembro de 2019

O MENDIGO - Parte 6

Meio que se arrastando José foi capengando pelas ruas, barba crescida, cabelos desgrenhados, o terno completamente amarrotado apresentando os furos da bala e alguns rasgos. José naquele momento era um verdadeiro curativo ambulante e ao passar por um boteco colocou as mãos no bolso encontrando uma salvadora nota de 20 reais, tudo o que restava ao ex-executivo milionário brocha e corno que não tinha mais Ferrari, Pajero, Renault, residência, sítio, casa na praia, conta no banco, dinheiro no cofre, jóias, cartões, documentos, cheques, ações, habilitação, emprego, amigos, cachorros, filhos e esposa. Em compensação tinha conquistado variadas cicatrizes pelo corpo todo, um processo de divórcio litigioso, um processo de homicídio doloso pela morte de três pessoas no acidente com a Ferrari, outro processo por roubo e desvio de milhões de dólares da empresa. De quebra o filho o tinha agraciado com uns traficantes que iriam lhe cobrar um dinheiro que ele não teria como pagar. Entrou no bar, sentou-se num banquinho ao lado de uma loira oxigenada, pediu um whisky e uma coxinha para enganar o estômago. Sem querer olhou para a bunda da loira, quando sentiu uma mãozona nas costas e se virou. Um enorme cidadão com cara de malfeitor e braços que pareciam dois postes, o chamou de folgado e perguntou a ele se estava a fim de apanhar mexendo com a loira dele. Ele olhou para a oxigenada, lembrou-se dos caras comendo a sua ruiva e desandou a gargalhar descontroladamente. Tomou um soco no olho que inchou na hora, outro soco quebrou o seu nariz e um definitivo que o fez perder dois dos dentes da frente. Depois foi jogado num terreno baldio esvaindo-se em sangue.

Acordou com o sol a pino no rosto. Arrebentado, destruído, rasgado, descalço e solitário, agora se auto denominava Zé Ninguém. Levantou-se e andou até uma praça pública que tinha uma fonte e um lago artificial. Lavou as feridas novas e antigas, agindo como um legítimo mendigo. Outro dia mesmo portava-se como um executivo milionário freqüentando os mais caros restaurantes. Hoje estava se banhando em público, sem nem se preocupar com os olhares de repulsa e reprovação. Após o banho de miserável voltou a caminhar até ouvir a brecada de um Ford Fox que quase o atropelou. Eram os traficantes cobrando a dívida do seu filho. Ele nem quis perder tempo explicando nada e avisou que não iria pagar e que se quisessem podiam bater nele a vontade. Obedientes, os meliantes bateram muito, principalmente nos seus machucados e o enfiaram no porta-malas do Fox. Passou o dia inteiro, incrédulo, se ralando dentro do porta-malas, quase sufocando e morrendo de sede. O carro parou noite avançada, ele reconheceu o cais do porto de Santos. Para que desaparecessem com ele foi colocado no porão de um navio de contrabandistas, que o deixaram a pão e água e cuja diversão era dar-lhe umas pancadas na falta de algo melhor para fazer durante a cansativa e demorada navegação. Não existiam mulheres a bordo, então alguns marinheiros o elegeram como “dama” para satisfação de perversões sexuais. Mesmo cheio de feridas, cicatrizes e hematomas, Zé Ninguém ainda teve que se submeter a todos os desejos sórdidos daqueles especialistas em sodomia. Nesse momento resolveu não pensar que tudo de ruim já tinha acontecido.

Como era um arquivo a ser eliminado, jogaram-no ao mar. Boiou de costas, sentindo-se mordido pelos habitantes do oceano até que aportou na praia de uma ilha deserta. Arrastou-se até a sombra de uma árvore e desmaiou de cansaço. Acordou de noite com muita fome. Olhou pra cima, não estava sob uma árvore e sim embaixo de uma bananeira. Perscrutou o horizonte, só vislumbrava bananeiras naquela ilha. Não era possível, ele detestava bananas, era alérgico a bananas, bananas desencadeavam nele uma diarréia monstruosa! Saiu dali chutando bananeiras, mato, areia, pedras. Deu urros, deu murros no ar. Não, ele não ia comer bananas e resolveu explorar a ilha no dia seguinte. Comeu mato naquela noite, ruminando feito um boi magro. A exploração não trouxe nada de novo, aquela devia ser a ilha do bananal. Não era possível, mas não encontrara nenhuma outra árvore frutífera naquele lugar. Displicentemente entrou em um lago para beber água, fazer suas necessidades fisiológicas e se refrescar. Depois de um tempo foi mexer numa madeira que boiava perto, mas não era uma madeira. Era um jacaré que ágil mordeu seu braço direito. Lutou ferozmente com o jacaré como se o réptil fosse os dois caras que comeram a ruiva, ou como se ele fosse a própria ruiva traiçoeira, ou os filhos larápios, o negão rastafári, os fraudadores da empresa, a enfermeira negligente, o assistente que tinha feito a denúncia falsa, os traficantes que o espancaram, os contrabandistas que o curraram no navio, os bandidos que o tinham assaltado ou o troglodita que batera nele.

Conseguiu se safar do jacaré com o braço direito detonado jorrando sangue. Usando fios de mato e plantas, amarrou o braço e estancou a hemorragia. Uma dor alucinante o percorreu inteiro. Correu para a praia e desmaiou. Acordou sem dor, a infecção era tamanha que nada sentia. A fome gigantesca o fez apelar e comer bananas. Comeu um cacho inteiro, o que lhe deu a maior diarréia de todos os tempos. O pior é que tendo que ir ao mar tantas vezes o sal enrugou a sua pele tornando-a absurdamente flácida. Não parecia mais um mendigo, nem um ser humano ele parecia agora. Mas valente e querendo vingança, mesmo com o braço daquele jeito construiu uma balsa rudimentar. Quando ela ficou pronta tomou uma decisão drástica. Teria que cortar parte do braço para a infecção não se espalhar ou ele morreria na empreitada. Atravessaria o oceano sem ter a menor noção ou preparo para uma aventura náutica dessa envergadura, não queria aumentar os riscos de errar. Quem mandou nunca ter comprado uma lancha, pensou arrependido. Lascou madeira, afiou pedras e fez uma machadinha. Aproximava a machadinha do braço e parava, aproximava e parava. Tomava fôlego, aproximava e parava, aproximava e parava... Até que não parou e cortou o braço friamente berrando de dor. Estancou o sangue, colocou o braço no fogo feito um Rambo e desmaiou outra vez. Depois de dias comendo bananas e defecando bananas sem parar, o cotoco tinha cicatrizado. Cabeludo, barbado, estropiado e sem um braço, colocou a balsa no mar e esperou a corrente mandá-lo para algum lugar.

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