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sábado, 14 de dezembro de 2019

O HOMEM QUE IA MORRER DEPOIS DE AMANHÃ

Tarde da noite ele dirigiu-se à sua cama desanimadamente. Até os chinelos lastimaram os seus passos depressivos e agradeceram o repouso merecido. Apagou o último cigarro no cinzeiro do criado mudo e tossiu o pulmão, que saiu pela boca por segundos e voltou tão violentamente ao seu peito que ele se dobrou inteiro de dor. Olhou para a cama e lá estava a gordinha gostosa que ele ainda insistia em chamar de esposa, mesmo sabendo que ela dava para o irmão dele, para o vizinho, para o filho do vizinho, para o moleque que entregava pizzas, para o dono do bar da esquina e até para a manicure do salão de beleza da rua. Só porque há anos ele brochava. Nem a sua língua endurecia mais. Nem o seu dedo era duro. Toda noite a gordinha deitava na cama exalando o cheiro de vários homens e depois de um escandaloso bocejo dizia ao companheiro: - boa noite seu frouxo, até amanhã. Ele era realmente um bunda mole, tinha engordado mais de quarenta quilos nos últimos anos. A sua mente estava flácida. As suas pálpebras pesavam o dia inteiro. Estava falido, não conseguira ter filhos, tinha um subemprego e um patrão que o chamava todos os dias de burro e incompetente. Aliás, humilhação era uma constante em sua vida, pois perdera a coragem de reagir ou argumentar. Desaparecera a aptidão de concatenar a fala ou pensamentos. Crianças apontavam para ele nas ruas como se vissem uma aberração. Ouvia impropérios de qualquer pessoa logo baixava os olhos, colocava as mãos nos bolsos e saía capengando com a cara redonda mais inchada ainda, vermelha de vergonha. Não tinha vontade nem de se olhar no espelho, porque ficava enojado com sua péssima aparência

Deitou-se ao lado da rechonchuda sensual de barriga pra cima, fitando o vagaroso ventilador de teto que lançava os braços bravamente contra o calor insuportável. Subitamente um pensamento invadiu a sua mente. Sim, invadiu, não podia ser dele porque ele era um completo idiota que não pensava. O pensamento disse assim para ele: “- você vai morrer depois de amanhã”. Ficou assombrado com aquelas palavras, mas aos poucos relaxou. Iria morrer, que bom. Seria o fim de todo o seu desgosto, de toda a mágoa daquela vida infrutífera. O sofrimento não mais afligiria o seu corpo, a sua alma poderia ir descansar no limbo dos indigentes. Depois de amanhã ele iria morrer, que dádiva. Iria finalmente assumir a podridão do seu ser e descansar eternamente o esqueleto no frio da terra. Nem adubo viraria, não seria semente de nada, pois até os vermes rechaçariam a sua carne e a terra, se pudesse, vomitaria seus restos num espasmo nauseabundo. O pensamento filho da puta e ao mesmo tempo tranqüilizador que havia invadido o vazio do seu cérebro, continuou a fermentar palavras tripudiando do seu estupor: “- amanhã é o seu último dia de vida, depois de amanhã você vai morrer”, reafirmou o pensamento. Num último rasgo de lucidez mórbida, o homem, antes de fechar os olhos e numa atitude inédita em anos de existência insípida, decidiu aproveitar cada segundo do último dia de sua vida que começaria ao amanhecer. Fechou os olhos já se imaginando num confortável caixão depois de amanhã.

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