Desta vez João
não despertou ao som da campainha, mas sim da buzina do seu companheiro Fiat
Fiesta, que pressentindo a chegada de outra hóspede, pôs-se a chamar o músico à
consciência, para que acordasse as mulheres com gentileza. Afinal, todos
precisavam se recompor, pois a Casa! já estava ativa, com todas as janelas
abertas em demonstração de cortesia e amabilidade a quem fosse chegar. As
artistas foram se preparar nos respectivos quartos. No seu banheiro João tomou
uma ducha renovadora e ao retornar à cozinha o café quentinho soltava fumaça, o
suco de laranja descansava na jarra, os pães, manteigas, frutas e biscoitos
aguardavam espalhados na mesa perto de cada xícara. Chamava a atenção um bule
de chá chinês Hong Pao exalando um suave aroma de pêssegos. Foi quando a
campainha soou invocando a presença de João na porta de entrada da Casa! que
estava aberta. Lá fora uma oriental de pele muito clara, de aparência tão meiga
que sugeria ser uma peça de porcelana Ming, aguardava quieta e pacientemente
que alguém se aproximasse. Meu Deus do Céu, falou alto João para a Casa! e o
Fiat Fiesta ouvirem, eu acho que vou morrer de felicidade! Não é crível! E foi
com inteira cordialidade e olhos reluzentes, recepcionar a chinesa adornada com
um vestido típico e chapéu ocidental.
Ambos se cumprimentaram
instintivamente à moda oriental, curvando-se e colocando as mãos junto ao peito
em reverência. Olharam-se e caíram na risada. João já se sentia íntimo das
integrantes da Trupe da Casa! antes de conhecê-las. Carla Kumiko era atriz,
bailarina, escritora e muito bonita. Parecia ter aproximadamente 35 anos, sua
pele alva combinava com os gestos suaves, mas tinha uma postura determinada.
João nem precisou ver o envelope. As outras artistas a receberam na ponta da
escada e a levaram para conhecer a Casa!, que se mostrava radiante com seu piso,
vidros e móveis lustrosos. Kumiko se instalou num quarto ao lado do de Kenya.
Quis conhecer o quintal, praticamente a primeira vez que todos iriam até os
fundos da Casa!, um lugar aprazível, dotado de belo jardim, redes para descanso
e uma piscina redonda com cachoeira. O calor desse verão era infernal e as
águas cristalinas fizeram um apelo irresistível para todos se refrescarem.
Kumiko se despiu lentamente do seu tradicional vestido chinês com a pureza de
uma criança, mas com a sensualidade de uma jovem ousada e experiente. Os três
artistas travaram apreciando aquele corpo sedutor que os fascinou
demasiadamente. Kumiko, consciente do feitiço que lançava ao éter, mergulhou e
atravessou a piscina por baixo d’água. Paolla e Kenya imediatamente a imitaram,
enquanto João, boquiaberto, estava se perguntando se ele teria vendido a alma
ao Diabo e tinha se esquecido. Felicidade demais qualquer Santo desconfia.
Deu-lhe até um frio na espinha, porque se fosse isso Satanás cedo ou tarde
cobraria a conta. A Casa! não cabia em si de contentamento, pois aquele espaço
ninguém utilizava há anos. Bateu até umas janelas para expressar sua euforia,
fingindo que era por causa de uma brisa inexistente. Solitário na garagem o
Fiat Fiesta ligou e acelerou o motor, acendendo as luzes para entrar no clima.
Paolla posicionou-se ao sol para manter o bronzeado cativante de sua morenice.
Kenya enrolou-se na toalha que encontrou numa cadeira e decidiu preparar
aperitivos e drinks. Kumiko continuou nadando. Parecia um peixe mergulhando,
nadando, mergulhando, nadando. João ficou apenas contemplando maravilhado,
tocando violão com medo de estragar o momento. Não tinha nenhuma ideia para
escrever sobre felicidade, pois a estava vivendo ao máximo. Um poeta dissera
que “o amor só é bom se doer.” Será que de forma semelhante só quando não se
tem ou se perde a felicidade é que nós a compreendemos? Só damos valor ao que
se deseja e quando conseguimos vira rotina como um casamento sem arroubos de
paixão ou se torna dispensável como um sapato furado jogado no lixo?
Essas
perspectivas corriqueiras não ajudavam João a ter ideias para depositar no
livro. Resolveu deixar pra depois, tirou a roupa e mergulhou na piscina com
Kumiko. Nadaram e brincaram próximos. As amigas também se juntaram aos dois
fazendo uma algazarra adolescente. A folia se transformou em sacanagens ora
juvenis, ora maduras, mas depois pornográficas, devassas e pecaminosas, tanto
que fizeram a Casa! corar a pintura das paredes e acalmar o Fiat Fiesta. Esse
envolvimento durou um tempo imensurável. Não importava quem governava o Brasil,
nem qual país vivia em guerra ou paz. Qualquer notícia soaria desnecessária.
Eles se bastaram como alimento, companhia, superfície, amizade, sexo, arte,
amor, época, paixão, felicidade... até que o celular do músico avisou que tinha
mensagem no WhatsApp. Um comunicado da Casa!
O comunicado
dizia “em breve a Trupe da Casa! estará completa”. Somente essa frase, sem
maiores explicações. Curta, grossa e precisa. Quem seria a pessoa? Homem,
mulher, gay, trans? Artista provavelmente seria. Mas de que área? Artes
plásticas? Fotografia? De repente um ou uma vídeomaker? Por que só desta vez
houvera um aviso prévio, ponderou João? Subitamente sentiu uma grande agonia.
Tentou responder a mensagem, mas ela não foi enviada, o que lhe causou uma
grande ansiedade. Estava tudo tão bom até aquele instante. Tudo tão legal que
nem escrever sobre felicidade ele conseguia. Nunca se dera verdadeiramente tão
bem com gente, fossem mulheres ou artistas. Seu jeito fora dos padrões sempre
ocasionava desconforto e até repulsa algumas vezes. As suas ações e modo de
viver assustavam os convencionais, mexiam com os costumes e o conservadorismo
das pessoas. Simultaneamente provocava os limites de quem se entendia como
avançado. A Casa! com ironia e uma pitada de maldade regozijava-se secretamente
com o desespero do músico. João correu para o lap top, estudou por algumas
horas e escreveu na página em branco: a felicidade é efêmera! Pronto,
finalmente o medo o havia liberado para começar a literatura que se propusera a
desenvolver. Medo. Sentimento que ele desconhecia até àquela hora. Que o seu
eterno otimismo erradicara dentro dele. Que nunca havia se permitido sentir.
Que jamais o havia prejudicado em atitudes ou reflexões. Medo. Sensação que lhe
fez a visão ficar turva e o raciocínio embaralhado. João respirou fundo e
fechou o lap top.
Deslocado em seu
próprio corpo, João dirigiu-se para a sala, onde percebeu que as moças
conversavam despretensiosamente sobre arte, vida, mundo, relacionamento, morte,
vida depois da morte, karma, dor, sofrimento, evolução, sexo, droga e
rock’nroll, alguns dos assuntos preferidos do artista, que foi recebido com
contentamento e carinho pelas parceiras. O papo foi demais de agradável e
esclarecedor, pois estava ao lado de pessoas sensíveis, cultas e inteligentes.
Com tantas ideias aflorando decidiram somar os talentos e criar um musical
enquanto a Casa! não lhes dava orientações. Imaginando temas e as canções que
faria, João ouviu um barulho na rua emergindo do devaneio. Quando deu por si
notou que 48 meses haviam se passado. Encontrava-se sozinho na escuridão da
sala, prostrado no sofá. Nem o Fiat Fiesta emitia sinal. Era meio da madrugada.
Será que as amigas o haviam deixado? Teria sido abandonado? Subiu a escadaria
horrorizado com a possibilidade que lhe ocorreu. As portas dos quartos estavam
todas abertas. Lágrimas de pânico surgiram em seus olhos. Foi ao quarto de
Paolla. Olhou para dentro e na penumbra divisou a morena adormecida
placidamente, nua e linda. Bem mais aliviado chegou ao quarto de Kenya e ela
também dormia tranquilamente, semi coberta, mostrando os fartos e vigorosos
seios para um abajur. Completamente em paz foi se certificar que Kumiko também
descansava, sonhando e vendo-se no palco em uma peça de Moliére, o que
comprovou com o sorriso lânguido da chinesinha aquietada e de olhos ainda mais
fechados. Novamente lágrimas lhe cobriram a visão. Agora lágrimas de felicidade.
Felicidade igual a que a Casa! sentiu ao ver João de transtornado transmutar-se
para zen.
Tanto tempo se
passara e nada do último integrante da Trupe da Casa! aparecer, o que deixava
João permanentemente angustiado. O stress da preocupação com o futuro não
permitia que ele saboreasse a vida na Casa! como anteriormente. Sem saber que
era escutado atentamente pelas paredes, João gritou para o teto “E aí? Ninguém
mais vai vir? Podemos começar os ensaios?” Obteve como resposta o vácuo, o que
o deixou injuriado. A falta de foco acabou atrapalhando o seu desempenho
sexual, o que não causou nenhum problema para as mulheres, que se divertiam
entre elas, sempre chamando João para as orgias que ele, sem graça, acabava
evitando. O pior era que nem em aflição conseguira aumentar o texto do seu
livro de uma frase só: “a felicidade é efêmera”.
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