O tempo rodou e
o músico distraiu-se com os altos papos, ervas, vinhos, cervas, cigarros,
cocaína, ensaios da parte teatral do musical, degustação das iguarias que nunca
se acabavam, piscina, cantorias. Nenhum dos hóspedes jamais havia saído do
terreno da Casa!, que na verdade era mais prazerosa do que as prisões
domiciliares dos corruptos da Operação Lava Jato, porque grupo daquele nível
não existia em lugar algum. Não curtia tudo como antes, mas nem se lembrava
mais da mensagem que lhe havia causado tanta agonia. Entretanto foi só abaixar
a guarda que ouviu a buzina estridente e viu piscarem alucinadamente os faróis
do Fiat Fiesta. Ficou na espera da campainha tocar, o que não ocorreu, mas como
a balbúrdia feita pelo automóvel não arrefeceu, ele foi até a porta. Uma cadelinha
da raça fox-terrier, com uma coleira vermelha, fitinhas amarelas na cabeça,
bagagem com potinhos para água e ração, caminha almofadada e brinquedos, latiu extasiada
para o músico abanando o rabinho. Um envelope estava preso na coleira.
Chamava-se Biba!
Aquilo era
gozação. Estavam tirando sarro da sua cara! Tanta agonia para receber, com todo
o respeito, uma cadelinha? Uma coisa podia ser dita com toda certeza. Naquele
instante ninguém demonstrava mais felicidade no mundo do que aquele animalzinho
deveras contente, que lambeu João e pulou no colo das moças fazendo festa e
bagunçando a Casa! que se rejubilava vendo a cara atônita e abobada de João.
Dia seguinte o
músico foi acordado por lambidas e latidos de uma cadela fox-terrier que
aparentava aproximadamente cinco anos. João tinha a certeza de que mais 48
meses haviam se passado. Olhou para o lap top e nada havia acrescentado ao
texto de seu livro. Não fizera canções para o musical que as moças tinham
gestado. Nada de poesias surgira. João balançou a cabeça decepcionado e pela
primeira vez teve vontade de ir embora da Casa!
Mesmo sendo
subjetivamente inanimada a Casa! abalou-se absolutamente com a mágoa expressada
por João. Primeiro estremeceu nas fundações, depois se paralisou. Janelas não
se abriram, as luzes enfraqueceram, as tintas das paredes apresentaram o
desgaste do tempo, e várias rachaduras, como se fossem rugas no rosto de um
centenário corcunda e alquebrado, surgiram aqui e ali. Os armários se
desabasteceram, a geladeira não se apresentou mais repleta de iguarias. A adega
se abandonou de vinhos preciosos, a piscina se intumesceu de folhas. O mágico
café esfriou na garrafa térmica. O Fiat Fiesta ensimesmou-se sem empreender uma
única manifestação. Até a festiva Biba ficou inerte em sua caminha, sem fome ou
sede nem de brincadeiras. Mas o músico, o cara mais otimista e audaz que já se
soubera no planeta, estava convicto. Precisava novamente respirar ares
diferentes, correndo o risco de quebrar a cara e o coração, ser preso ou
deportado, fundar uma seita, explodir o prédio da ONU vestido de bombas e
panfletos. Quem sabe sofreria abdução por extraterrestres evoluídos que lhe
explicariam o que era felicidade, que ele só sabia sentir sem conseguir
escrever duas linhas sobre ela. Talvez alcançasse a sabedoria dos deuses ou
rastejasse no mais cruel dos umbrais, mas ele necessitava lançar-se às
intempéries. Provavelmente, sendo estupidamente inconseqüente, chegando por
vezes a beirar a irresponsabilidade, não merecia nada daquilo que tinha
experimentado na companhia daquelas artistas maravilhosas. Nem sabia mais
diferenciar realidade e fantasia, qual era o tempo ou em que dimensão se
encontrava. Pegou o cartão do velho procurador da Casa! para dar-lhe uma
satisfação e entregar as chaves, mas o cartão estava em branco. Rasgou-o em
pedacinhos jogando-os para cima como confetes de carnaval. Sorriu meneando a
cabeça. Lógica nunca fazia parte daquela Casa!
Não teve coragem
de se despedir das parceiras, porque a sintonia que tinham alcançado era
impossível de descrever ou igualar. Era certo que morreria de saudades, mas
pelo menos guardaria lembranças palpáveis e muitos causos pra contar nos
botequins da vida. Se sempre fora uma pessoa desapegada de tudo e todos, só lhe
cabia voltar ao que era para, talvez, poder ser feliz e pintar em palavras e
sons o que um dia a cabeça lhe perguntara e só lhe ofertara uma resposta: o que
é felicidade? Efêmera.
Pegou todas as
suas coisas cuidadosamente e as colocou no Fiat Fiesta. Abriu o portão, ligou o
carro que lhe respondeu imediatamente com um ronco grave e soturno, mas antes
decidiu acender um último cigarro. A cada tragada uma memória dos
acontecimentos na Casa! percorria-lhe o cérebro, fazendo ferver o sangue nas
veias como a brasa que jorrava fumaça pela janela. A fumaça ia se dissipando
com as lembranças em sua mente, pois sabia que felicidade era efêmera, pelo
menos isso descortinara.
Acelerou com o
carro freado, só pra fazer um último teste de potência no companheiro. Colocou
a marcha ré, endireitou o automóvel na rua e não teve coragem de escapulir sem
um último olhar de despedida e gratidão a Casa! Virou-se acenando, mas
assombrou-se. A Casa! estava em ruínas, sem telhado, com as janelas caindo,
vidros estilhaçados. Do portão da garagem só tinha um pedaço enferrujado. O
mato cobria da entrada até a porta, esta transformada em um resto de madeira
esburacada por cupins. A tristeza que percorreu o seu corpo inteiro foi de doer
os ossos. Esfregou os olhos na esperança de que veria a bela e majestosa mansão
amarela, jovial como uma casa que acabara de ser reformada. O cenário não
mudou. Onde estariam Paolla, Kenya, Kumiko, Biba? Eram personagens da sua
imaginação? Fantasmas? Espíritos do bem? Fadas? Musas? Nada? Não existiam? Não
existiam. Nada existia, nem ele próprio, que agora estava totalmente desprovido
de sentimentos tristes ou alegres. Foi-se embora deixando a sua alma para trás.
Resolveu passar
no prédio da Avenida Ipiranga, pois ainda tinha as chaves em seu bolso.
Estacionou na garagem e pegou o elevador deixando no fatigado Fiat Fiesta as
suas coisas. No apartamento tudo permanecia igual, inclusive os objetos que
deixara no automóvel. O lap top ligado se destacava na mesa. A campainha soou e
uma correspondência foi colocada pelo vão da porta. Abriu-a. Recebera uma ação
de despejo. O vento forte da janela do décimo andar emaranhou-lhe os cabelos e
as razões. Foi até o lap top, apagou a frase que estava digitada e escreveu
outra. Aproximou-se da janela desejando sentir a liberdade do vento e voar pra
longe. Respirou com intensidade e fechou bruscamente a janela, a liberdade do
vento e o desejo de voar. Pegou o violão e duas mochilas descendo para a
garagem. Montou em sua Harley Davidson Sportster, cujo espelho revelou um
ancião que parecia profeta, de compridos e revoltos cabelos brancos, com uma
barba espessa e longuíssima enfeitando o rosto redondo. João Amorim partiu
levando toda a sua estória, poesias, canções, alegria, ousadia e otimismo. No
lap top ligado deixou escrita uma única frase:
felicidade não
existe!
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