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quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

A CASA! - Epílogo


O tempo rodou e o músico distraiu-se com os altos papos, ervas, vinhos, cervas, cigarros, cocaína, ensaios da parte teatral do musical, degustação das iguarias que nunca se acabavam, piscina, cantorias. Nenhum dos hóspedes jamais havia saído do terreno da Casa!, que na verdade era mais prazerosa do que as prisões domiciliares dos corruptos da Operação Lava Jato, porque grupo daquele nível não existia em lugar algum. Não curtia tudo como antes, mas nem se lembrava mais da mensagem que lhe havia causado tanta agonia. Entretanto foi só abaixar a guarda que ouviu a buzina estridente e viu piscarem alucinadamente os faróis do Fiat Fiesta. Ficou na espera da campainha tocar, o que não ocorreu, mas como a balbúrdia feita pelo automóvel não arrefeceu, ele foi até a porta. Uma cadelinha da raça fox-terrier, com uma coleira vermelha, fitinhas amarelas na cabeça, bagagem com potinhos para água e ração, caminha almofadada e brinquedos, latiu extasiada para o músico abanando o rabinho. Um envelope estava preso na coleira. Chamava-se Biba!

Aquilo era gozação. Estavam tirando sarro da sua cara! Tanta agonia para receber, com todo o respeito, uma cadelinha? Uma coisa podia ser dita com toda certeza. Naquele instante ninguém demonstrava mais felicidade no mundo do que aquele animalzinho deveras contente, que lambeu João e pulou no colo das moças fazendo festa e bagunçando a Casa! que se rejubilava vendo a cara atônita e abobada de João.

Dia seguinte o músico foi acordado por lambidas e latidos de uma cadela fox-terrier que aparentava aproximadamente cinco anos. João tinha a certeza de que mais 48 meses haviam se passado. Olhou para o lap top e nada havia acrescentado ao texto de seu livro. Não fizera canções para o musical que as moças tinham gestado. Nada de poesias surgira. João balançou a cabeça decepcionado e pela primeira vez teve vontade de ir embora da Casa!

Mesmo sendo subjetivamente inanimada a Casa! abalou-se absolutamente com a mágoa expressada por João. Primeiro estremeceu nas fundações, depois se paralisou. Janelas não se abriram, as luzes enfraqueceram, as tintas das paredes apresentaram o desgaste do tempo, e várias rachaduras, como se fossem rugas no rosto de um centenário corcunda e alquebrado, surgiram aqui e ali. Os armários se desabasteceram, a geladeira não se apresentou mais repleta de iguarias. A adega se abandonou de vinhos preciosos, a piscina se intumesceu de folhas. O mágico café esfriou na garrafa térmica. O Fiat Fiesta ensimesmou-se sem empreender uma única manifestação. Até a festiva Biba ficou inerte em sua caminha, sem fome ou sede nem de brincadeiras. Mas o músico, o cara mais otimista e audaz que já se soubera no planeta, estava convicto. Precisava novamente respirar ares diferentes, correndo o risco de quebrar a cara e o coração, ser preso ou deportado, fundar uma seita, explodir o prédio da ONU vestido de bombas e panfletos. Quem sabe sofreria abdução por extraterrestres evoluídos que lhe explicariam o que era felicidade, que ele só sabia sentir sem conseguir escrever duas linhas sobre ela. Talvez alcançasse a sabedoria dos deuses ou rastejasse no mais cruel dos umbrais, mas ele necessitava lançar-se às intempéries. Provavelmente, sendo estupidamente inconseqüente, chegando por vezes a beirar a irresponsabilidade, não merecia nada daquilo que tinha experimentado na companhia daquelas artistas maravilhosas. Nem sabia mais diferenciar realidade e fantasia, qual era o tempo ou em que dimensão se encontrava. Pegou o cartão do velho procurador da Casa! para dar-lhe uma satisfação e entregar as chaves, mas o cartão estava em branco. Rasgou-o em pedacinhos jogando-os para cima como confetes de carnaval. Sorriu meneando a cabeça. Lógica nunca fazia parte daquela Casa!

Não teve coragem de se despedir das parceiras, porque a sintonia que tinham alcançado era impossível de descrever ou igualar. Era certo que morreria de saudades, mas pelo menos guardaria lembranças palpáveis e muitos causos pra contar nos botequins da vida. Se sempre fora uma pessoa desapegada de tudo e todos, só lhe cabia voltar ao que era para, talvez, poder ser feliz e pintar em palavras e sons o que um dia a cabeça lhe perguntara e só lhe ofertara uma resposta: o que é felicidade? Efêmera.

Pegou todas as suas coisas cuidadosamente e as colocou no Fiat Fiesta. Abriu o portão, ligou o carro que lhe respondeu imediatamente com um ronco grave e soturno, mas antes decidiu acender um último cigarro. A cada tragada uma memória dos acontecimentos na Casa! percorria-lhe o cérebro, fazendo ferver o sangue nas veias como a brasa que jorrava fumaça pela janela. A fumaça ia se dissipando com as lembranças em sua mente, pois sabia que felicidade era efêmera, pelo menos isso descortinara.

Acelerou com o carro freado, só pra fazer um último teste de potência no companheiro. Colocou a marcha ré, endireitou o automóvel na rua e não teve coragem de escapulir sem um último olhar de despedida e gratidão a Casa! Virou-se acenando, mas assombrou-se. A Casa! estava em ruínas, sem telhado, com as janelas caindo, vidros estilhaçados. Do portão da garagem só tinha um pedaço enferrujado. O mato cobria da entrada até a porta, esta transformada em um resto de madeira esburacada por cupins. A tristeza que percorreu o seu corpo inteiro foi de doer os ossos. Esfregou os olhos na esperança de que veria a bela e majestosa mansão amarela, jovial como uma casa que acabara de ser reformada. O cenário não mudou. Onde estariam Paolla, Kenya, Kumiko, Biba? Eram personagens da sua imaginação? Fantasmas? Espíritos do bem? Fadas? Musas? Nada? Não existiam? Não existiam. Nada existia, nem ele próprio, que agora estava totalmente desprovido de sentimentos tristes ou alegres. Foi-se embora deixando a sua alma para trás.

Resolveu passar no prédio da Avenida Ipiranga, pois ainda tinha as chaves em seu bolso. Estacionou na garagem e pegou o elevador deixando no fatigado Fiat Fiesta as suas coisas. No apartamento tudo permanecia igual, inclusive os objetos que deixara no automóvel. O lap top ligado se destacava na mesa. A campainha soou e uma correspondência foi colocada pelo vão da porta. Abriu-a. Recebera uma ação de despejo. O vento forte da janela do décimo andar emaranhou-lhe os cabelos e as razões. Foi até o lap top, apagou a frase que estava digitada e escreveu outra. Aproximou-se da janela desejando sentir a liberdade do vento e voar pra longe. Respirou com intensidade e fechou bruscamente a janela, a liberdade do vento e o desejo de voar. Pegou o violão e duas mochilas descendo para a garagem. Montou em sua Harley Davidson Sportster, cujo espelho revelou um ancião que parecia profeta, de compridos e revoltos cabelos brancos, com uma barba espessa e longuíssima enfeitando o rosto redondo. João Amorim partiu levando toda a sua estória, poesias, canções, alegria, ousadia e otimismo. No lap top ligado deixou escrita uma única frase:

felicidade não existe!

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