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sábado, 14 de dezembro de 2019

A BAILARINA, O BARMAN E O PIANISTA - Epílogo

Chego à minha casa perto do meio dia graças novamente aos serviços prestimosos e abnegados do Fiat Palio. Parece que esse carro é uma extensão da minha cabeça, também com vontade própria e tal. Ele não pode me ajudar num momento importantíssimo que vou contar logo mais, mas não o recrimino pelo tanto que foi parceiro sempre. Todos ainda dormem porque em casa o horário noturno é extenso e repleto de ação. Tomo um banho lembrando cada momento da longa noite e vou trabalhar direto. Acho que não devo ligar para a bailarina e de noite vou beber com amigos que me dizem que eu estou mais estranho do que de costume. Esquisitos são eles, pois estranho é nada pelo que eu tinha passado. Só privilegiados têm noção do que é a bailarina e a maravilha de compartilhar as carícias mais lascivas com ela. A minha agitação está grande, assim como a dispersão em relação aos papos que para mim não apresentam nenhum atrativo. Vou para casa, toco um pouco de violão e desmaio. Acordo dia seguinte sobressaltado com a campainha da casa soando pouco depois das treze horas e resolvo verificar a caixa de correspondências. Entre muitas contas tem um envelope azul. Olho o remetente e está escrito Bailarina! O envelope é uma surpresa principalmente pelo seu conteúdo: uma aliança e uma cartinha de texto objetivo e inesperado.

Meu anjo,

Maravilhosos todos os momentos que passamos juntos. Na primeira noite de junho eu estava tão triste, tão desesperadamente melancólica, com uma mágoa maior do que pode caber em qualquer coração. E conheci felicidade num estalar de dedos. Eu sorri. Na última noite com você eu fui uma mulher completa em teu amor ensandecido e poderoso a ponto de me fazer sentir o que é paixão. Eu vivi. Mas eu não existo meu amor. Eu sou apenas uma mulher que você moldou em seus sonhos. Outra mulher da sua vida lembra-se? Uma obra prima esculpida de acordo com os seus desejos, não pelo mérito de nenhum deus. E você vai me perder agora. A terceira mulher da sua vida te acorda pra realidade. Se cuida.

Beijos, Bailarina.

Gelo e queimo ao mesmo tempo. Quase tenho uma síncope. A minha agonia é insuportável. Só pode ser uma brincadeira de péssimo gosto. Eu tinha estado dentro da bailarina, eu tinha certeza de que havia acontecido uma noite de amor que eu nunca experimentara igual. Eu tinha lambido com o maior tesão a tatuagem indefinida nas costas daquela mulher. Eu tinha apertado o corpo escultural dela com minhas mãos e junto ao meu corpo. Ainda podia sentir o seu perfume em mim. Havia demorado tanto para compreender que ela não era fruto da minha imaginação sequiosa por musas! Não podia ser verdade o que estava escrito na carta. Não fazia sentido. Vai ter imaginação fértil assim no inferno, refleti eu, antes mesmo da minha cabeça. E a aliança sem nenhum nome ou inscrição? Por que ela a teria enviado com a carta? Na minha mente a terceira gargalhada do barman ecoa retumbante, assim como acordes dissonantes feitos os de Hermeto tocados pelo pianista. Ligo para o número do celular da bailarina e a gravação da operadora fala que o número de telefone não existe. Entro no Fiat Palio e tento relembrar onde tínhamos ido no amanhecer da sexta feira. Rodamos muito. Nem eu nem o Palio conseguimos encontrar aquele prédio situado em algum lugar da zona norte. Resta ir alguma noite ao bar ver se encontro um velho e simpático barman carcomido pelo tempo, um excelente pianista latino fazendo mesuras com a cabeça, um garçom atendendo poucos clientes, ávido pelo seu descanso. E uma morena triste e deslumbrante com corpo de bailarina e longos cabelos pretos, sentada ao balcão frente a um copo de Black Label. Ela abrirá lindo sorriso quando me vir. Eu e o Palio sabemos qual é o bar e qual o endereço dele. Não tive coragem de ir até hoje, mas esta noite vou lá.

POST ESCRIPTUM
Bem agora, no momento em que o Fiat Palio está me levando ao bar, a minha louca e desvairada cabeça de poeta se esforçou e resolveu criar umas palavrinhas dirigidas à Bailarina. Chegando ao bar vou escrevê-las num guardanapo, colocar no envelope azul e entregar a ela. Ou não...

À Bailarina

Mulher dos sonhos transparentes,
lascivos e indecentes,
construídos na paixão.
Mulher, aceito a tua dança
formando aliança
com nossa ilusão.
Abraço a fome do teu corpo,
disfarço e bebo a tua dor.
Cansaço e mágoa de um morto,
faço-me assim o teu consolador.
Mulher, não se ama impunemente,
mesmo que a gente tente
não há como escapar.
Mulher, deixaste a tua lembrança
no beijo que ainda alcança
e torna-nos um par.
Apague essa realidade.
Negue ser de um deus cruel.
Faça em mim tua vontade.
Nasça a tua vida neste céu.


FIM

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