Eu não gosto de
dentistas. Desculpe-me se você gosta. Ou melhor, desculpe coisa nenhuma, o mau
gosto é todo seu. Eu desgosto tanto desses seres que agüentei por dois anos um
molar avariado que até dores temporomandibulares me causou. A dor vinha, eu me
entupia de comprimidos. A dor me latejava eu aumentava a dose, usava
anticépticos nas gengivas, rezava, me benzia e me embriagava de whisky para
ficar anestesiado provocando um sonodesmaio. Às vezes parecia que a dor
refletia em todos os pontos da minha face, do meu corpo, da minha alma, mas eu agüentava
firme. Bastava imaginar aquele sorriso gentil que disfarça a maldade, o prazer
em torturar a nós, pobres sofredores que temos que nos submeter àqueles
aparelhos projetados pelas mentes mais perversas não para te curar ou aliviar a
sua aflição, mas única e exclusivamente para te destruir, humilhar, magoar, te
tornar covarde e indefeso feito um bebê frente a um pitbull babando sangue.
Suportei tanto tempo isso porque definitivamente não aprecio dentistas. Outro
dia até cheguei ao exagero do pesadelo. Um dentista me perseguia pelas ruas montado
num motorzinho gigante fazendo bzzzbzzzzzbzzzzz. Com a maior cara de
transtornado ele tentava me matar com as faquinhas cirúrgicas que parecem mais
apropriadas para retalhar as carnes dos açougues ou para utilização por serial-killers
de filmes B. Acordei sobressaltado e gritando socorro... socorro...
Mesmo o doutor João, o meu dentista, um espécime diferenciado dessa raça refinada de sádicos pela sua real delicadeza, educação, competência, sensibilidade de músico, pai esmerado e bom humor, não me comove ou convence. Todo esse disfarce é utilizado para levar os incautos sem reação à cadeira do sacrifício. E a cadeira vibra massageando-nos para tornar o abate mais suave, como se o desgraçado ali sentado já não tremesse o pior terremoto do Japão.
Mesmo o doutor João, o meu dentista, um espécime diferenciado dessa raça refinada de sádicos pela sua real delicadeza, educação, competência, sensibilidade de músico, pai esmerado e bom humor, não me comove ou convence. Todo esse disfarce é utilizado para levar os incautos sem reação à cadeira do sacrifício. E a cadeira vibra massageando-nos para tornar o abate mais suave, como se o desgraçado ali sentado já não tremesse o pior terremoto do Japão.
Pois bem. Um dia
a dor me venceu. Tomei todos os analgésicos, bebidas e drogas disponíveis. Toda
vez a dor voltou mais lancinante, profunda e terrível. Capitulei. Marquei a
data do meu martírio. Pedi aos céus numa última tentativa de misericórdia que
me afastassem esse cálice, mas ouvi que nunca tinha recusado um copo e teria
que aceitar este também. Quem mandou beber que nem louco, não é?Como era
inevitável o meu suplício, imaginei uma forma de retribuir o tormento. Enfiei
na boca tudo o que poderia provocar o pior hálito do mundo, numa mistura
nauseabunda para dificultar o exame: cebola, alho, café, pinga, cerveja,
bacalhau, ovo, extrato de enxofre, queijo gorgonzola, mortadela, cigarro...
Entrei no consultório e Dr. João abriu aquele sorriso enorme de dentista. Parece que tem duas bocas cheias de dentes, uma normal, outra de crocodilo australiano. Fez piadas, conversou generalidades, elogiou a minha família, perguntou do meu trabalho solidarizando-se com minhas dificuldades. O doutor falou de futebol, artes, música, poesias, numa tentativa infrutífera de me distrair e tirar o foco das sacanagens que para mim ele preparara. Cheguei perto do meu algoz, bafejando o hálito nojento e logo dizendo que não dava nem para encostar-se ao dente de tanta dor, portanto não sabia como ele ia fazer para eu não ter um ataque de raiva e quebrar tudo. Certo do seu poder verdugo e com a maior calma do mundo, Doutor João me falou: - mas claro, se não pode encostar, vamos apenas olhar, certo? E diabólico apontou a cadeira com um sorriso sarcástico, os olhos vermelhos, as orelhas pontiagudas, um tridente nas mãos, chifres e um rabo fino e comprido com um triângulo na ponta...
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