Seguidores

sábado, 14 de dezembro de 2019

O MENDIGO

Abriu os olhos, não reconheceu a paisagem. Estava coberto de papelões e com muito frio. Uma garrafa de Velho Barreiro descansava vazia ao seu lado. Pelas pontadas no fígado devia ter passado a noite toda sugando essa aguardente. Viu-se em trajes maltrapilhos, sujo, cabelo e barba enormes. O mau cheiro que exalava lhe deu náuseas. Não resistiu e tentou vomitar, mas o estômago não tinha o que dispensar, pois não se alimentava há dias. Uma ferida purulenta na perna começou a latejar nesse instante. O sangue já seco em volta dessa ferida o fazia inteiro dor, estava totalmente machucado. Mas quem era esse que vestia o seu corpo combalido, se ele era um alto executivo bem sucedido que trabalhava há anos numa multinacional italiana? O que estava fazendo assim nele mesmo? Fora raptado? Assaltado? Sofrido um acidente? De repente lembrou ser casado com uma linda mulher de cabelos ruivos e curtos. Um casamento numa crise só, mas continuavam juntos por causa de grana e dos filhos. Filhos? Lembrou também que tinha filhos! Uma menina e um menino. Jovens. O que aconteceu comigo, perguntou-se? Por que se transformara em mendigo? Por que não recordava o que acontecera se sabia quem era? Tentou se levantar, não conseguiu apoio no braço direito e caiu. Apavorado e de olhos esbugalhados gritou: - cadê o meu braço direito?

Aprumou-se com grande esforço, encontrava-se ainda completamente embriagado. Não agüentou, ficou de joelhos e deitou novamente. Era o nascer do dia e pessoas começavam a transitar suas indiferenças pelo chão em que se prostrara. Insistente, conseguiu levantar a podridão inteira. Como chegara a esse estado calamitoso? Onde perdera sucesso, bens, família, dignidade e o braço direito? Será que tinha se drogado? Ou teria enlouquecido desaparecendo com passos desconexos pelo mundo? Uma confusão total martelava sua cabeça que girava embaralhando os pensamentos. Resolveu ir andando sem destino, já que o momento não lhe apresentava sentido. Chegou a uma ponte e uma vontade imensa de acabar com a vida e o sofrimento o assomou. Achava que não tendo religião não ia pra céu ou inferno nenhum. Não ficaria na memória de ninguém, porque no estado em que estava não era quem tinha sido. Olhou para baixo e falou baixinho que o seu corpo iria encontrar descanso nesse rio que navegava esgoto. Parou bem à beira da ponte. O fedor do rio minimizou o mau cheiro que sentia dele próprio. Não tinha medo e não precisava coragem porque nele não moravam sentimentos. Abriu o braço esquerdo e o cotoco. Uma cena horrível vista por qualquer ângulo. Um ser em pedaços por dentro e por fora prestes a se integrar ao rio que não corria mais água. Só morte seguia a sua corrente. Fechou os olhos e antes de pular recordou um dia em que acordara muito cedo na suíte principal da sua mansão, com a esposa ruiva nua na cama. Forçando a mente começou a rememorar os fatos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário