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quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

ANTIDENTISTA (Reality-Conto) Parte 2

Após o exame, onde usou todas as máscaras do consultório devido ao meu desagradável odor bucal, sentenciou: é canal. Com a minha sorte logo pensei: vai ter canal de tv aberta, tv a cabo, internet, satélite, UHF. Receitou-me um comprimido para diminuir a inflamação e marcou para a semana seguinte o início das transmissões do canal, quer dizer, a execução da obra e do mártir. Para minimizar a tensão do momento o carrasco falou que eu poderia tomar as minhas cervejinhas e que não iria doer nada. Nele! Gargalhou sonoramente e eu também gargalhei como se tivesse achado graça, com o ódio me corroendo por dentro. Pedi o orçamento, analisei-o com ar despreocupado como se fosse pagá-lo, ameacei deixar um sinal, o que foi prontamente recusado. Despedimo-nos falsamente com um afetuoso abraço, ambos sabendo que o próximo duelo poderia ser fatal.

A maldita dor não passava nem com o comprimido receitado. Claro que vão dizer que demora em fazer efeito, mas não é isso. Faz parte da tortura, para você não esquecer em nenhum momento daquilo que te espera. Tentando me dissociar da dor comecei a meditar provocando reminiscências da minha infância. Recordei que quando bem pequeno quis seguir algumas profissões, como estas quatro:

 Jogador de futebol: praticamente nasci com uma bola nos pés. Jogava futebol de manhã, de tarde e de noite. Fui campeão paulista, joguei no São Paulo, mas me aposentei aos 17 anos devido ao violão e às mulheres que já não me deixavam dedicar totalmente à vida de craque. Parei no auge da carreira, gesto repetido depois pelos Pelés, Zicos e Rivelinos que me seguiram.

 Lixeiroera bem miúdo e nossa família morava numa ampla casa térrea, vários quintais. Minha zelosa mãe não me deixava ir pra rua nessa época. Após me esbaldar nos quintais eu ficava grudado no portão da frente, com os braços pra fora, esperando o caminhão do lixo passar para ver os lixeiros correndo pelas ruas, livres, e eu lá trancado. O mais perto que cheguei de ser lixeiro foi ter me tornado publicitário, poluindo e enganando as mentes de criancinhas, adolescentes, adultos e velhinhos com meus textos persuasivos para convencê-los a beber refrigerantes, cervejas e bebidas em geral.

Escritor: sempre tive alguma facilidade para as letras, entrei na faculdade de engenharia graças às provas de português e redação, que definiram o placar. Já escrevi um livro infantil aprovado e não publicado por uma editora, claro. Hoje escrevo músicas e letras de músicas, algumas foram gravadas por ótimos intérpretes, e poemas, crônicas, textos, frases e contos no mínimo para que eu mesmo os leia.

Dentista: sim, pasmem! Já pensei em ser dentista, mas eu não sabia os detalhes dessa profissão de vândalos das bocas, dentes, gengivas e maxilares. O meu primeiro dentista, professor doutor Fausto Eduardo Lang sempre foi perfeito. Não é o meu dentista até hoje porque quase deixei um carro para pagar um tratamento na última vez que o vi! Quando eu tinha ainda dentes de leite (Leite argh...) ele passava os desenhos da Disney em slides para me distrair. Nunca senti dores fortes. Queria então ter aquela profissão, até que um dia uma cárie surgiu e ele usou aquele maldito motorzinho. Não senti dor muito forte, mas nunca mais o perdoei por aquela afronta. Daí para adiante, cárie após cárie a minha revolta aumentou. Uma vez doutor Lang me convenceu a arrancar dois dentes do siso de uma vez. Sabia ele que se fizesse um nunca mais eu voltaria. Também não senti nada na hora, mas quase morri no pós- operatório com duas bolas de basquete no lado direito do rosto. Mas desisti de ser dentista mesmo quando me descobri uma pessoa pura, de bons princípios, que desde pequenininho só se dedicava a estudo, arte, esporte e muito sexo. Nunca estilinguei um passarinho, dissequei sapos, joguei gatos no lago dentro de um saco, estourei rojões no ouvido de cachorros, bati em velhinhas e mendigos, essas perversidades que formam um futuro sádico, ações preparatórias para a conclusão no curso de odontologia.

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