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sábado, 14 de dezembro de 2019

A BAILARINA, O BARMAN E O PIANISTA

Balcão de um bar desconhecido, excelente para apoiar cotovelos, copos e pensamentos. Bebo tranquilamente a minha tensão. O barman não me conhece, mas já sabe que não sou conversa. Ele é mais velho do que este antigo balcão. Como naquela antiga lenda, acho que o bar foi construído e certamente ele já morava ali, era careca, corcunda, enrugado e com as mãos calejadas porque já trabalhara na roça mais cedo ainda do que jovem. Mas que rosto simpático e confiável esse senhor carcomido pelo tempo apresenta. Tem um sorriso daqueles que não se abre pra qualquer piada, mas somente para uma situação de valor. Uma gargalhada, então, só por causos realmente inusitados. Ao longo desta noite foram oito sorrisos e uma só gargalhada até agora. Apesar disso ele não tem um ar sisudo e na verdade revela um raro bom humor.

No fundo do bar, ao lado esquerdo do balcão, o pianista toca jazz, bossa e ritmos latinos. Ele aparenta ser argentino ou uruguaio ou cubano, sei lá. Normalmente gente desses povos e eu não nos sintonizamos em ambientes musicais, não sei bem por que ou sei bem por que. Meus ouvidos o escutaram cochichar ao garçom que me conhece, mas eu não me lembro de tê-lo esquecido. Sendo respeitado como músico, ele me olha de soslaio agradecido considerando-me como um cliente diferenciado, pois cada vez que eu gosto de uma música estalo discretamente os dedos ao invés de bater ruidosas palmas. Aí ele faz uma mesura ridícula e desnecessária com a cabeça. Talvez porque só eu, entre os clientes do bar, esteja apreciando o som.  Na verdade eu e aquela linda morena sentada a três banquinhos do meu.

Ela também ouve a música imersa em total silêncio. Uma noite de nenhum trabalho para o barman, que não tem que escutar as mesmas ladainhas bêbadas de sempre. Essa mulher está triste, impressionantemente triste e a cada gole que dá no whisky a sua melancolia parece mais aquecer. Ela me fitou algumas vezes, apesar de que é uma mulher interessante demais para me notar. Os seus gestos são muito delicados, tem uma graça toda especial. Alta madrugada, quando se levantou para ir ao toalete, passou bem perto de mim mostrando um corpo deslumbrante. Tem uma tatuagem indefinível no final das costas. Eu a vi porque a blusa dela deu uma levantadinha e assim ficou até ser ajeitada no meio do caminho. Se eu fosse arriscar diria que ela é ou foi uma bailarina. O desfilar dessa mulher pelo bar foi seguido na ida e na volta por faces sequiosas dos cavalheiros exalando desejo e por faces raivosas das damas exalando inveja. Ela nem aí com nada disso, sentou-se de novo em seu lugar.

O barman está no centro do balcão, bem entre nós. A moça dá um profundo gole em seu Black Label, de olhos fechados. Fica assim alguns segundos curtindo a bebida percorrer as suas veias. Eu percebo que lábios deliciosos ela tem e tento adivinhar o que se passa na alma daquela mulher tão bonita e angustiada. Dá uma vontade de escrever... Tanta que eu quero que minha hibernação criativa se dane. Pego um guardanapo e peço uma caneta ao garçom. Rabisco uns versos com a minha letra ininteligível. Olho para a bailarina - para mim ela é bailarina - e ela está me olhando também. Fico desconcertado e disfarço pedindo outra cerva, mirando as garrafas nas prateleiras como se elas tivessem sido colocadas ali naquele instante. Dou a peculiar mexida em meus bagunçados cabelos. A morena dá outro gole daqueles, com tanto prazer que até eu me esquento e fico com vontade de Black Label. Ela abre os olhos e me olha, pega o seu copo, levanta o corpo escultural do banquinho e vem na minha direção. Aí me dá uma quentura que eu ligaria o ar condicionado no máximo mesmo com este enorme frio. Não fala nada, sorri e senta-se ao meu lado.

O barman sorri também, pela nona vez, mas este foi riso mais generoso, cúmplice. O pianista até faz uma pausa fora de hora para acompanhar o que está acontecendo. Súbito, de forma simultânea, a bailarina e eu tomamos as nossas bebidas sorvendo cada gota, sentindo o sabor escolhido como companhia da madrugada. Estamos quietos, não conversamos a noite inteira e eu nem me agüentando de calor tiro o casaco, pego outro guardanapo e escrevo “Take Five”. Eu sempre peço “Take Five” aos bons pianistas. O garçom leva o papel ao músico, que deve adorar essa canção porque sorri pela primeira vez de forma sincera, se ajeita todo e manda ver. Foi ótimo. A bailarina, o barman e eu acompanhamos o latino percutir o teclado, o que ele faz com a técnica e o swing necessários. Acaba a música e eu começo a elogiar a interpretação estalando os dedos. A bailarina dá uma risada maravilhosa e cheia de charme começa a estalar os dedos também, assim como o barman, que repete o nosso gesto com uma sonora gargalhada, a segunda da noite. A mesura com a cabeça feita pelo pianista foi bem natural desta vez.

A partir daí a cada canção encerrada, a linda bailarina, o velho barman e eu estalamos os dedos gargalhando como crianças sem trocarmos palavras. A bailarina esqueceu mágoa. O barman fez-se feliz. O pianista sentiu-se recompensado. E eu pasmo fiquei até nos descobrirmos sozinhos com o garçom arrumando as cadeiras, pois já era hora do bar fechar. Pedimos as contas, eu pago em dinheiro e a bailarina com cartão de crédito. Tem neste momento o semblante de uma deusa. Uma expressão revigorada, forte, alegre. Agora sim seu rosto é totalmente esplendor. Levanta-se, dá-me um abraço e um beijo tão intenso que eu bebo nessa hora umas cinco doses de Black Label através da língua da linda bailarina morena. Olhando dentro de mim ela fala obrigada anjo e parte. O barman pega outra garrafa de Black Label, serve três copos, coloca a garrafa no balcão, chama o pianista, sentam-se cada um de um lado e ficamos os três emudecidos, com os cotovelos apoiados no balcão, pensativos, mergulhados em nossas solidões e mirando as garrafas nas prateleiras como se elas tivessem sido colocadas ali naquele instante.

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