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sábado, 14 de dezembro de 2019

O HOMEM QUE IA MORRER DEPOIS DE AMANHÃ - Parte 5

O boato das conclusões dos peritos espalhou-se como uma praga de todas as maneiras: inicialmente propagado pela imprensa e depois disseminado pela internet, viajou pelos celulares, passeou boca a boca pelas que ainda tinham língua, praticamente provocando um toque de recolher em todas as falas. Receosa de ter o principal órgão articulador das palavras separado em dois por alguma palavra julgada indecente ou inadequada pelo homem que ia morrer amanhã, toda a população se autocensurou. Foi um voto de silêncio geral e absoluto. As transmissões de rádio foram cessando, porque nenhum locutor ou repórter ousava arriscar comentários. Na televisão a cobertura passou a ser feita só com imagens e letreiros. Ninguém mais se atreveu a emitir opinião sobre qualquer assunto, declamar uma poesia, cantar uma música, contar uma piada, gritar, falar um palavrão, rezar, dizer juras de amor, dar beijo de língua, filosofar ou exprimir a maior besteira de todos os tempos. A comunicação entre as pessoas passou a ser um risco. Todos meditavam cem vezes antes de proferir uma simples frase ou um corriqueiro cumprimento. Bebês não choravam, cães não latiam, gatos não miavam e os pássaros migraram para o norte para não soltarem os seus trinados por ali. O medo da tesoura assassina emudeceu totalmente a cidade e até os policiais só se falavam via rádio utilizando códigos próprios, para não ofender ou aumentar a ira do homem que ia morrer amanhã, que a essa altura estava sendo caçado por todos os cantos.

Alheio a essa fama de censor crítico do vernáculo, das conversas, interjeições, sentenças, exclamações, afirmações, questionamentos, ponderações, relatos, definições e verbalizações genéricas, o homem que ia morrer amanhã foi percorrendo o silêncio opressivo da cidade sem se importar com os seus possíveis algozes. Após cumprir a missão de fechar todas as malditas e malévolas bocas daquela metrópole, segundo os seus particulares critérios, estava perambulando no meio da noite por uma rua pouco movimentada, pois a maioria das pessoas ficara escondida dentro de suas residências, quando viu uma plaquinha na porta de uma casa humilde com os dizeres: “Mãe Piná conta o seu futuro”. Ele sorriu e tocou a campainha sem pensar, porque era uma mente privada de inteligência. Uma senhora com cara de cigana e lenço na cabeça o atendeu gentilmente, mandou que ele entrasse numa sala escura e se sentasse. A cigana, totalmente desligada do mundo, deu o preço da consulta e ele pagou adiantado, mesmo porque já sabia que ia morrer amanhã e só estava ali para confirmar.

A vidente se concentrou firmemente, jogou as suas cartas e disse ter certeza de que a vida do homem que ia morrer amanhã iria mudar da água para o vinho. Ela via uma grande sorte, um prêmio de loteria e perguntou se ele havia comprado um bilhete ou algo assim Ele lembrou na hora que, já que ia morrer, não havia conferido o jogo da mega sena onde fazia uma fezinha toda semana. Só faltava essa. Morrer rico sem usufruir da sua fortuna. Entretanto a cigana fechou o semblante e avisou-o que via também grandes dificuldades para ele receber esse prêmio, pois ela o assistia no futuro breve fugindo de muitas pessoas sem conseguir entender o motivo. Só sabia que ele estava numa grande enrascada, mas milionário. Sem pensar, porque era totalmente desmaterializado de razão, o homem que ia morrer amanhã pegou na mesa vários incensos em brasa e os apagou nas mãos e braços da cigana que julgou charlatã. Após ela gritar intimidada, cortou com a sanguinolenta tesoura a língua da vidente que nunca mais contaria as suas adivinhações para gente nenhuma. Para terminar, enfiou as lâminas da tesoura no meio da testa da mulher. Esta poderia ter tido muitas premonições acertadas ao longo da carreira mediúnica, mas não tinha previsto o perigo, nem desconfiado da proximidade do seu próprio fim.

Cansado de cortar as más línguas e tapar tantas bocas despudoradas, o homem apavorou-se subitamente porque um novo pensamento apoderou-se do seu cérebro, alastrando o pânico por todo o seu corpo que começou a tremer descontroladamente. Esse novo pensamento martelou nos seus ouvidos estas palavras que explodiram e ficaram ecoando em sua cabeça ausente de ondas cerebrais: - a vidente estava certa seu imbecil!

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