Uma tempestade lambia o rosto de Zé Ninguém quando ele abriu os olhos assustado e avistou terra próxima. Prendeu-se na balsa com os fios de mato distinguindo no horizonte uma praia e prédios, era cidade grande. A tormenta o levou para as pedras, onde a balsa se partiu ao meio e onde ele se raspou todo, abrindo uma ferida enorme na perna. Mais uma para sua coleção. Ao alcançar o raso ele nadou até a praia e não teve forças para sair de lá até o sol nascer e mostrar ao mundo que ele era um arremedo de homem. Quando teve forças rastejou pela cidade desconhecida procurando restos de comida no lixo. À frente de uma casa abandonada viu outro mendigo, este sem as duas pernas, pedindo esmolas. Próximo ao ancião uma garrafa de Velho Barreiro. Zé Ninguém se aproximou sorrateiro, roubou a garrafa, saiu correndo enquanto o velho aleijado xingava e pedia socorro. Ninguém acudiu o velho. Zé parou para comer o lixo que tinha achado como alimento e ficou lá sentado bebendo a pinga para aquecer a sua alma, recebendo esmolas e mordidas dos cães de rua com uma aparência horripilante, misto de mendigo, náufrago, animal e planta, repleto de chagas, lesões, contusões e sangue, aos trapos, sujo e fedendo. Com gente Zé Ninguém não mais se assemelhava.
O entardecer chegara rápido, mas ele ainda tinha mais de meia garrafa de pinga para atravessar a madrugada. Zé Ninguém não conseguia raciocinar uma forma de provar que não era mendigo. O álcool e as dores das úlceras lhe embotavam o cérebro. Será que o seu destino teria sido diferente se tivesse matado a esposa e os amantes? Um advogado sem escrúpulos alegaria forte emoção ou defesa da honra e ele estaria livre da ruiva, dos amantes e com dinheiro para se safar das outras encrencas. Sim, a festa naquela madrugada alterara todo o seu destino. Maldita hora em que ele tomara aquele coquetel de whisky e pedrinhas que o deixara inerte. Pensou mais um pouco e discordou dele mesmo. Isso era moralismo barato. Todo mundo naquele evento tinha bebido e se drogado fartamente. Mas mesmo se os rumos do destino não mudassem, deveria no mínimo ter coberto a ruiva e os amantes de bordoada. Não poderia ter ficado omisso. Tinha sido um verdadeiro banana e ele detestava bananas. Tardiamente colérico permaneceu quieto até que sentiu um chute no peito. Abriu os olhos e viu uma menininha burguesa pegar as moedas arduamente esmoladas e ainda o chamar de vagabundo. Ele tentou balbuciar uma explicação dizendo que era um milionário formado em administração de empresas com doutorado em economia pela Universidade de Harvard, mas sua língua enrolou e ele não falou nada com nada. Também, o que isso iria interessar àquela menininha desgraçada? A única vez que ele tinha reagido a alguma coisa neste período fora ao jacaré e de forma bem ineficaz. O frio começou a aumentar, ele juntou uns gravetos para fazer uma fogueira e uns papelões para se proteger do vento gélido. Decidiu que no dia vindouro daria um basta àquele sofrimento de pária. Abraçado à garrafa adormeceu, só acordando de vez em quando para beber a sua companheira.
Abriu os olhos na beira da ponte, pronto para pular e acabar com tudo. Os inacreditáveis fatos tinham assim sido desenvolvidos, uma infinidade de acontecimentos inusitados que mudaram radicalmente a sua vida, pensou José. Se algum mendigo lhe tivesse feito uma narrativa semelhante, certamente ele teria rido muito e oferecido uma bebida ao demente pela criatividade. A sua mutação de José Empresário para José Ninguém tinha sido violenta e inexorável. Uma metamorfose para nenhum Gregor Samsa colocar defeito. Por fora a sua casca fora degradando numa velocidade estonteante, destruindo tudo aquilo que nele pudesse ser considerado belo ou próximo de uma aparência aceitável pela nossa sociedade falsa, superficial, desumana, traiçoeira e covarde. Mas por dentro o desastre havia sido ainda pior, por ter sido lento e extremamente cruel. Surpreendido pelas ações externas foi-se desfazendo interiormente pouco a pouco feito um leproso, perdendo orgulho, respeito por ele mesmo, consciência, memória, dignidade, inteligência, raciocínio, sentimentos, esperança, amor à vida. A cada momento uma parte daquilo que o tornava um homem fora caindo e ficando para trás. Regredira de homem a animal, de animal a vegetal e agora só lhe faltava voltar à condição de mineral, virando areia no fundo do rio.
FIM
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