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sábado, 14 de dezembro de 2019

O HOMEM QUE IA MORRER DEPOIS DE AMANHÃ - Epílogo

Amedrontado e agora na dúvida se realmente ia morrer amanhã, o homem saiu correndo pelas ruas sem rumo. Transformado numa grande bola humana desgovernada e sem direção definida, ia abalroando e derrubando os poucos transeuntes que atravessavam o seu caminho. Seguia destroçando com a força do seu peso todos os objetos que encontrava pela frente, até que parou, sentou-se no banco de uma praça e num esforço cerebral hercúleo, argumentou com o pensamento novo que o pensamento anterior tinha lhe dado a certeza ontem de que ele iria morrer amanhã. Quase apoplético por essa desmesurada e difícil tentativa de pensar, uma capacidade que fora se atrofiando até desaparecer totalmente da sua cabeça, perguntou como é que uma coisa dessas poderia mudar assim sem mais nem menos?

O pensamento novo dominando totalmente a mente do homem, porque ela era um espaço circunscrito repleto de nada, disse que não tinha a ver com outros pensamentos, que aquele era um pensamento único, absoluto e independente, que o balofo e sua estupidez deveriam ter evitado sair fazendo besteiras, cortando as línguas das pessoas. Que direito tinha o monstruoso homem de censurar as falas dos outros, mesmo se fossem xingamentos, ofensas, mentiras, calúnias e difamações? Mas o pior é que eram verdades. Era de conhecimento geral, continuou inexorável e sem compaixão o pensamento novo, que ele era realmente um brocha, um monte de banhas, um inábil, um safado irresponsável, portanto a maioria das línguas tinha despejado sobre ele a realidade dos fatos que ele quisera sempre esconder e nunca tivera coragem de refutar. E muito menos de alterar. Além disso, o homem que ia morrer amanhã tinha cortado também todas as outras línguas que nem haviam se referido a ele diretamente e que foram rasgadas por mero capricho, por discordâncias de pensamento de alguém que nem pensar pensava! Se tanto, ele tinha um primitivo instinto. Uma manifestação inferior de impulsos que comandavam o seu comportamento sem padrão. O homem normalmente afastado de elucubrações começou a ter milhões de pensamentos zumbindo ao mesmo tempo, o que congestionou a sua cabeça. Foram tantos que ele saiu encarniçado dali, já que não podia cortar a língua desse pensamento que o estava transtornando.

Os pensamentos invasores e perversos o acompanharam em sua fuga, jogando em sua cara sem parar e sem censura a verdade de sua existência até aquele momento desprezível e que se tornara ainda mais execrável. Tentando raciocinar, numa última tentativa de recuperar o seu cérebro deletado, o homem que ia morrer amanhã chegou a achar que houvera feito um bem ao encerrar palavras de tantas línguas e bocas cheias de sentimentos vazios, armas trevosas da maldade, instrumentos da podridão interior dos seres mais rasteiros e sem dignidade para viverem numa sociedade humana e justa.

Mas finalmente vencido pelos argumentos de tantos pensamentos contrários, concordou com eles perguntando-se quem era ele afinal? Algum deus para definir o direito ao silêncio ou a palavra, vida ou morte e o que era digno ou podre, certo ou errado? Ele era um pária, um homem que não pensava. Um monte de banhas a sustentar uma cabeça inócua que havia surtado. Acreditando que era um homem que ia morrer amanhã, ele foi procurar no seu destino o encontro com a mulher de foice nas mãos.

Já era quase meia noite quando o homem que ia morrer amanhã descobriu uma funerária, entrou atabalhoado pela porta e passou a procurar algum enorme caixão onde pudesse acomodar todos os seus muitos quilos de parvalhice. O funcionário estava adormecido, pois não houvera clientes até aquele instante, o que facilitou para o despojado de pensamentos fuçar a casa toda. Mas, decepcionado, não localizou o que desejava. Perto de desistir, chegou ao quintal e encontrou lá um único ataúde adequado, abandonado no chão nos fundos do terreno, jogado em meio ao mato. Acomodou-se, trancando-se no escuro e abafado esquife na esperança de que a morte fosse buscá-lo amanhã, que era dali a pouco. Não era possível ele ter sido enganado. Ele tinha que morrer, ele tinha que bater as botas, passar desta para melhor, apagar, entregar a alma a Deus ou ao diabo, ir para o beleléu, dizer adeus ao mundo, ir para a cidade dos pés juntos, esticar as canelas, ir comer grama pela raiz, largar a casca, dar o couro às varas, tomar o chá da meia noite, desencarnar, empacotar, fechar os olhos, vestir o pijama de madeira, pifar, virar presunto, ir para o além, dar o último suspiro, chegar às últimas, estar pronto, descer a terra, expirar, encontrar o criador, virar adubo, virar comida de minhoca, ir a sete palmos...

O pensamento anterior que havia causado toda aquela revolução lhe prometendo o descanso eterno tinha sido claro e convincente, para ele muito mais do que o novo, deseducado, que colocara incertezas nesse acontecimento trazendo milhões de outros pensamentos perturbadores. O desgastado homem fechou os olhos no caixão e decidiu não permitir que qualquer pensamento voltasse a tomar o seu cérebro. Ficaria lá de braços cruzados, imóvel, cego, naquele inferno tenebroso e mudo respirando arfante, até que acabasse o ar ou chegasse o dia de amanhã trazendo a morte.

Assim agiu o homem que ia morrer amanhã, enquanto lá fora imperava o silêncio de uma cidade inteira acuada por não saber o que dizer. Todos permaneceram quietos, ouvindo apenas o uivo do vento na madrugada e aguardando o desfecho da história.

FIM

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