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sábado, 14 de dezembro de 2019

OS PÉS DE MARIA - Parte 3


O escritório em que Maria trabalhava ficava no décimo nono andar do edifício, mas quem falou que os pés da moça subiriam pelos elevadores? A loirinha não acreditou quando os seus pés alcançaram as escadas e foram pulando os degraus de três em três. Ela sacolejava tanto que parecia cavalgar cangurus. Não parecia estar nela mesma tal era o seu desespero. Chegando ao andar correto, os pés de Maria chutaram a porta e entraram calmamente. Os olhares de todos os funcionários seguiram fixamente Maria indo em direção da sala do presidente da empresa. Os pés dela chutaram também a porta da sala dele e fizeram a moça espantada sentar-se na cadeira do patrão, que para sorte dela ainda não havia chegado. Não satisfeitos com aquela cena, os pés de Maria se colocaram para cima da mesa do homem e assim ficaram até que ele chegasse, por mais que a moça empreendesse esforços para tirá-los dali e por mais que os seus colegas de trabalho rogassem a ela que terminasse com aquela loucura. Maria, totalmente descabelada e com o rosto vermelho, parecia realmente uma doida puxando os pés e berrando para eles deixarem a mesa. Berrava também para os funcionários dizendo que não tinha culpa por aquilo que os pés dela estavam fazendo. É claro que o patrão chegou nessa hora e espumou de ódio ao ver Maria, histérica, sentada em sua cadeira com os pés na sua mesa e a maior confusão na sala. Foi demissão sumária por justa causa e ainda com recomendação de tratamento psiquiátrico para a jovem ex-empregada. Após o tumulto os pés de Maria e Maria saíram tranquilamente da empresa enquanto os colegas comentavam com tristeza que a moça havia surtado e precisaria de internação, coitadinha

Os pés de Maria não se sensibilizaram com o estado catatônico da moça após os episódios até então acontecidos. Prosseguiram a caminhada desprezando o cansaço da rapariga, que estava desgastada não só pelo desmesurado esforço físico despendido como principalmente pelo aspecto emocional, pois estava ficando alucinada com aquele problema. Afinal, de uma hora para outra passara a compartilhar o seu corpo com aqueles pés que agora julgava estranhos à sua pessoa. Isso abalaria qualquer ser humano, ter o seu livre-arbítrio de locomoção, o seu direito sagrado de ir e vir comprometido. A situação dela era muito mais complicada do que a de um cadeirante, por exemplo, que contava com rodas que poderia acionar mecanicamente tendo força nos braços. A ela não estava sendo dada opção nenhuma. Tinha que ir aonde os seus pés lhe determinassem e ainda fazer o que eles indicavam, pois senão ela ficava no lugar plantada que nem um poste.

Maria não sabia como conseguir ajuda e imaginou um diálogo com um senhor que ia andando pela calçada perto dela: - Por favor, meu senhor. Será que o senhor poderia me pegar no colo e me levar a um médico? Os meus pés hoje ganharam vida própria e não me deixam ir sozinha até onde quero ou preciso! Com certeza ninguém lhe daria ouvidos. Virariam as costas, iriam rir, humilhá-la, abandoná-la feito um fantoche que uma criança brincou até cansar, para depois esquecer nos fundos de uma gaveta. Ela ficaria a mercê da vontade dos seus pés. Maria, mesmo com o pouco tempo em que aquela loucura estava ocorrendo, sentiu saudades da sua liberdade. Aquela prisão aberta era horrível. Ser manipulada daquela maneira certamente era um dos piores castigos que alguém poderia sofrer. A falta de privacidade, sentir que o seu cérebro plenamente lúcido e em perfeito funcionamento nada significava, não comandava os seus atos ou os seus mais comuns anseios, faziam o episódio ser completamente absurdo. Era como se Deus a houvesse transformado na mais moderna e inteligente das máquinas, mas que eternamente saberia os seus limites de máquina.

A jovem continuou a refletir e começou a se arrepender de não ter ido a tantos lugares que precisava e queria ter estado. Quantas visitas ela não havia feito, adiando, adiando, deixando para além do depois. Por outro lado, pensou também em quantos passos errados poderia ter evitado, mas que pudera escolher livremente. Normalmente tomava decisões tarde demais. Sempre andara pé-ante-pé na vida, hesitante, excessivamente cautelosa, com os pés atrás... Será que aquela preocupação exagerada em viver e tomar decisões, o medo de errar, o pensar mil vezes antes de agir tinham ido parar nos seus pés? Será que eles tinham odiado tanto que ela vivia com eles atrás? Será que ela havia se transformado num novo tipo de zumbi? Apenas nos mais escabrosos filmes trash de terror poderia acontecer algo semelhante. Por que ela, por que com ela? Descontrolada e como tinha pleno domínio das suas mãos, puxou os seus cabelos violentamente para trás e esbofeteou o próprio rosto sem dó no meio da rua, enquanto as pessoas chamavam a polícia para buscar uma louca agressiva que estava se auto-flagelando na frente de crianças. Jogou-se no asfalto e tentou se arrastar, mas o máximo que conseguiu foi se ralar e sujar toda, pois os pés emitiam uma força descomunal e preponderante sobre as suas pernas e cintura, tornando impossível reagir. Ela não tinha a capacidade de definir qualquer ação. Perdera qualquer possibilidade de determinar seus movimentos. Só conseguiria realizar qualquer atividade com a prévia concordância dos seus pés. Nem se estivesse com correntes nos pés seria tão ruim. E os seus pés não tinham parada. Antes que a polícia chegasse os pés de Maria a tiraram dali voando, acabando com o espetáculo patético e deprimente da moça ensandecida.

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