O escritório em
que Maria trabalhava ficava no décimo nono andar do edifício, mas quem falou
que os pés da moça subiriam pelos elevadores? A loirinha não acreditou quando
os seus pés alcançaram as escadas e foram pulando os degraus de três em três.
Ela sacolejava tanto que parecia cavalgar cangurus. Não parecia estar nela
mesma tal era o seu desespero. Chegando ao andar correto, os pés de Maria
chutaram a porta e entraram calmamente. Os olhares de todos os funcionários
seguiram fixamente Maria indo em direção da sala do presidente da empresa. Os
pés dela chutaram também a porta da sala dele e fizeram a moça espantada
sentar-se na cadeira do patrão, que para sorte dela ainda não havia chegado.
Não satisfeitos com aquela cena, os pés de Maria se colocaram para cima da mesa
do homem e assim ficaram até que ele chegasse, por mais que a moça empreendesse
esforços para tirá-los dali e por mais que os seus colegas de trabalho rogassem
a ela que terminasse com aquela loucura. Maria, totalmente descabelada e com o
rosto vermelho, parecia realmente uma doida puxando os pés e berrando para eles
deixarem a mesa. Berrava também para os funcionários dizendo que não tinha
culpa por aquilo que os pés dela estavam fazendo. É claro que o patrão chegou
nessa hora e espumou de ódio ao ver Maria, histérica, sentada em sua cadeira
com os pés na sua mesa e a maior confusão na sala. Foi demissão sumária por
justa causa e ainda com recomendação de tratamento psiquiátrico para a jovem
ex-empregada. Após o tumulto os pés de Maria e Maria saíram tranquilamente da
empresa enquanto os colegas comentavam com tristeza que a moça havia surtado e
precisaria de internação, coitadinha
Os pés de Maria
não se sensibilizaram com o estado catatônico da moça após os episódios até
então acontecidos. Prosseguiram a caminhada desprezando o cansaço da rapariga,
que estava desgastada não só pelo desmesurado esforço físico despendido como
principalmente pelo aspecto emocional, pois estava ficando alucinada com aquele
problema. Afinal, de uma hora para outra passara a compartilhar o seu corpo com
aqueles pés que agora julgava estranhos à sua pessoa. Isso abalaria qualquer
ser humano, ter o seu livre-arbítrio de locomoção, o seu direito sagrado de ir
e vir comprometido. A situação dela era muito mais complicada do que a de um
cadeirante, por exemplo, que contava com rodas que poderia acionar
mecanicamente tendo força nos braços. A ela não estava sendo dada opção
nenhuma. Tinha que ir aonde os seus pés lhe determinassem e ainda fazer o que
eles indicavam, pois senão ela ficava no lugar plantada que nem um poste.
Maria não sabia
como conseguir ajuda e imaginou um diálogo com um senhor que ia andando pela
calçada perto dela: - Por favor, meu senhor. Será que o senhor poderia me pegar
no colo e me levar a um médico? Os meus pés hoje ganharam vida própria e não me
deixam ir sozinha até onde quero ou preciso! Com certeza ninguém lhe daria
ouvidos. Virariam as costas, iriam rir, humilhá-la, abandoná-la feito um
fantoche que uma criança brincou até cansar, para depois esquecer nos fundos de
uma gaveta. Ela ficaria a mercê da vontade dos seus pés. Maria, mesmo com o
pouco tempo em que aquela loucura estava ocorrendo, sentiu saudades da sua
liberdade. Aquela prisão aberta era horrível. Ser manipulada daquela maneira
certamente era um dos piores castigos que alguém poderia sofrer. A falta de
privacidade, sentir que o seu cérebro plenamente lúcido e em perfeito
funcionamento nada significava, não comandava os seus atos ou os seus mais
comuns anseios, faziam o episódio ser completamente absurdo. Era como se Deus a
houvesse transformado na mais moderna e inteligente das máquinas, mas que
eternamente saberia os seus limites de máquina.
A jovem
continuou a refletir e começou a se arrepender de não ter ido a tantos lugares
que precisava e queria ter estado. Quantas visitas ela não havia feito,
adiando, adiando, deixando para além do depois. Por outro lado, pensou também
em quantos passos errados poderia ter evitado, mas que pudera escolher
livremente. Normalmente tomava decisões tarde demais. Sempre andara pé-ante-pé
na vida, hesitante, excessivamente cautelosa, com os pés atrás... Será que
aquela preocupação exagerada em viver e tomar decisões, o medo de errar, o
pensar mil vezes antes de agir tinham ido parar nos seus pés? Será que eles
tinham odiado tanto que ela vivia com eles atrás? Será que ela havia se
transformado num novo tipo de zumbi? Apenas nos mais escabrosos filmes trash de
terror poderia acontecer algo semelhante. Por que ela, por que com ela?
Descontrolada e como tinha pleno domínio das suas mãos, puxou os seus cabelos
violentamente para trás e esbofeteou o próprio rosto sem dó no meio da rua,
enquanto as pessoas chamavam a polícia para buscar uma louca agressiva que
estava se auto-flagelando na frente de crianças. Jogou-se no asfalto e tentou
se arrastar, mas o máximo que conseguiu foi se ralar e sujar toda, pois os pés
emitiam uma força descomunal e preponderante sobre as suas pernas e cintura,
tornando impossível reagir. Ela não tinha a capacidade de definir qualquer
ação. Perdera qualquer possibilidade de determinar seus movimentos. Só conseguiria
realizar qualquer atividade com a prévia concordância dos seus pés. Nem se
estivesse com correntes nos pés seria tão ruim. E os seus pés não tinham
parada. Antes que a polícia chegasse os pés de Maria a tiraram dali voando,
acabando com o espetáculo patético e deprimente da moça ensandecida.
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