Doutor João pegou pesado. Receitou-me dois antibióticos para
tomar a partir de domingo. Com o olhar distante e falando muito baixo, de forma
quase ininteligível, sussurrou que era recomendável eu não beber nada de álcool
junto com os medicamentos. Eu explodi encolerizado, procurei alguma coisa
pesada para atirar pela janela do consultório/ringue e estraçalhar a vidraça,
mas percebi que tudo havia sido guardado, com exceção da mesa e do sofá. E o
eminente odontologista, sentadinho na cadeira, ainda disse que estava liberando
o sábado para minimizar o meu sofrimento. Tremendo cara de pau. Pensei em jogar
a cadeira e o doutor pela janela, mas ele ia se machucar demais e não teria
mais graça a nossa contenda... Não bastava a lei seca, o meu oponente queria
secar definitivamente a minha garganta. Já bebi de tudo ao mesmo tempo em que
tomei antibióticos e nunca tive problema nenhum. Pesquisei profundamente a
influência do álcool sobre os antibióticos e descobri que não existe prova
científica de que os efeitos da droga são anulados pela bebida. Resta a estória
que o álcool potencializa os efeitos da droga. Ora, vamos ser otimistas. Se ele
potencializa os efeitos pode potencializar para melhor, aumentando os efeitos
benéficos do remédio! Decidi beber que nem louco de terça a sábado, deixando
para definir o que fazer a partir de domingo.
Meus caros leitores deste reality-conto. Confesso que quase
exagerei. Por via das dúvidas bebi por três semanas. Tive a colaboração de
grandes amigos. Um foi comigo ao bar assim que eu deixei o consultório na terça
feira e detonamos para comemorar a minha performance na disputa. Quarta feira,
além do bar, teve uma comemoração de aniversário repleta de surpresas
artísticas emocionantes, o que me motivou a detonar de novo. Quinta aconteceu
um encontro que acabou virando um micro sarau e qualquer sarau para mim sempre
é repleto de intensa emoção, portanto requer o acompanhamento alcoólico. Sexta
feira foi melhor ainda. Encerrei o expediente às dezessete horas e abri a
primeira latinha. Mais tarde fui a uma festa maravilhosa com muita cerva e
vinho. Detesto misturar bebidas, mas abri uma exceção nesse dia. Finalmente,
depois de uma extenuante semana de árduo e dignificante trabalho, afinal para
isso existe o ganha-pão líquido, chegou o sábado. Acordei bem cedo e como café
da manhã eu abri uma latinha de cerva. Depois do almoço esvaziei a geladeira de
um amigo onde fui convidado a tomar umas doses/garrafas de whisky com outros
amigos, então não pude recusar tamanha gentileza. Seria uma ofensa. No dia seguinte
cedo eu iniciaria o envenenamento receitado pelo odontologista e ao escurecer
decidiria o que fazer. Mas doutor João não tem idéia do estado de nervos que eu
ficava quando eu não bebia depois do escurecer. Coitado. De repente os dentes
dele descobririam!
Os promotores da contenda tentaram adiar o combate. Atrasaram
o início da briga, mas não conseguiram fugir. Fui apenas com a cara, a coragem
e minhas mãos agressivas. Desta vez não me fiz anunciar, chutei a porta e subi
as escadas. Como sempre Doutor João me aguardava na ante-sala, desta vez placidamente
sentado no sofá, uma vez que tinha dobrado o valor do seu seguro de vida,
alterado o seu plano de saúde de prata para ouro e controlado a diarréia.
Cumprimentamo-nos com respeito, afinal estávamos ali para uma luta justa. De
repente,uma loira escultural num vestido branco bem apertado e um decote que
revelava seios voluptuosos entrou na sala e me chamou para o ringue. A arma do
doutor João desta vez era realmente poderosa. O especialista bucal ficou
aguardando no sofá, deixando a assistente fazer as honras da casa e iniciar os
procedimentos do combate. Até pensei em dispensar qualquer anestesia, mas
imaginei que talvez fosse essa a tática covarde do médico. Só havia duas formas
de desviar a minha atenção naquele instante: cerveja e mulher linda. Aliás,
isto merece um adendo. Preparando-me com afinco para vencer este combate, fui
visto esta semana em corridas matinais e corridas de bicicleta, disfarçado, é
claro. E pasmem. Fiquei, pela primeira vez em quase trinta e cinco anos, sem
beber por DOIS DIAS INTEIROS. Inclusive fui a um evento num bar, o chopp
passeava na minha frente e eu que já havia passado o domingo quase grudado no
teto de tanta sede, resisti não sei como. E ainda fui escalado como motorista
da turma, afinal era um abstêmio, palavrão do qual nunca haviam me chamado.
Acho que o desejo da vitória suplantou até isso. Está certo que cheguei à minha
casa completamente tonto e vomitando de tanta sobriedade numa ressaca
insuportável, afinal o excesso de lucidez embota o cérebro, mas era por uma boa
causa.
E a assistente loira de corpo escultural, perto da minha
amada maravilhosa, linda, saborosa, inteligente, perspicaz, esperta, quente,
deliciosa, bem humorada, criativa, gostosa e perfumada, a musa de tantos versos
e canções, nada significava. A arma secreta do doutor não surtiu efeito e o
vale tudo começou com toda a violência. O gosto de sangue revive em um leonino
todos os seus ancestrais, aqueles que nada temeram e tudo enfrentaram na selva
com nobreza e valentia incomparáveis. O torturador me perguntou se estava
doendo. Respondi que até ali só sentira cócegas. Vi no olhar do dentista a sua
decepção. Não eram possíveis tantos anos de estudo e noites em claro, tantos
cadáveres haviam servido de cobaias, tantos adversários haviam sucumbido e eu
não o brindava com um gemido, uma reclamação, uma lágrima de dor, um aizinho
sequer? O cara mudava de instrumentos, apertava, cortava, virava, mexia,
fincava e eu com as mãos fechadas prontas para o ataque derradeiro não movi um
músculo, praticamente nem pisquei desafiando meu algoz. O maldito dente estava
quebrado e fui avisado que a parte fraturada iria ser retirada. Está doendo?
Perguntou o carrasco. Eu sorrindo respondi que não sentira absolutamente nada!
Isso transtornou de vez o inimigo, que se preparou para o golpe final. Mexeu,
virou, fincou, apertou, puxou. O sabor de sangue novamente tomou conta da minha
boca. Suando e tremendo o tirano, certo da sua vitória, questionou: - doeu
muito? E eu perguntei: - mas já tirou?
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