Não consigo entender por que. De repente as pessoas passaram
a se preocupar comigo, me perguntando se estou bem, falando que estão torcendo
para que eu me saia vitorioso no duelo e que estão pedindo veementemente pela
minha sobrevivência. Teve gente que até mencionou estar rezando pela
erradicação total e milagrosa de todo e qualquer problema dentário que eu possa
ter. Alguns explicaram que fizeram promessas para que nem pernilongos me
mordessem. Disseram que se algo me incomodasse bastava telefonar que
prontamente me ajudariam. Realmente eu me senti muito paparicado esses dias.
Estranho, muito estranho tudo isso, porque senti um ar de medo nessas pessoas.
Parece que boatos se disseminaram a meu respeito, chamando-me, imaginem só, de
mandingueiro, bruxo, macumbeiro, feiticeiro, mago. Chegaram ao cúmulo de dizer
que eu tenho parte com “o coisa ruim”, que eu rogo pragas feito as ciganas das
esquinas. Que pratico as artes do mau olhado. Que sou um vidente do mal.
Especialista em vudu. Praticante do sabbath maligno. Realizador de missas
negras e rituais macabros tipo os dos filmes do Zé do Caixão. Seguidor de
religiões necromânticas. Emissário das trevas. Profeta da demonologia. Seguidor
de São Cipriano. Amigo de Lúcifer. Parceiro de Satã. Num rasgo de insanidade me
compararam a Ozzy Osbourne como se eu devorasse morcegos vivos. Que maldade.
Que culpa eu tenho se alguém mordeu o dedo do dentista e eu tinha alguns dias
antes mencionado isso? Tenho eu por acaso que me penitenciar pela previsão
acertada? Sinto-me injustiçado. E se o dentista fosse um dedo-duro e quebrasse
o dente de quem o mordeu? Alguém parou para perguntar por que o dedo foi
mordido? Bom. Nada vai me desviar ou distrair. Estou focado no duelo de terça
feira. E vou com língua, dentes e dedos afiados!
Às 15 horas eu comecei a lustrar o meu revólver e o coloquei
no coldre. Fizera uma refeição frugal: uma folha de alface, uma rodela de
tomate, três rodelas de pepino e três de cenoura. Tudo acompanhando um fino
filé bem passado. Degustei o leve prato e escovei os dentes de forma perfeita,
desta vez não incomodaria com um bafo mortífero. Saí para uma reunião no
Morumbi, tão despreocupado que eu me encontrava. Até por lá a notícia da luta
se espalhara. Toda a agência de propaganda se solidarizou comigo, a
profissional da mídia inclusive quis marcar uma cerveja ao longo da semana para
comemorar a minha vitória certa. Na volta meu grande (enorme) amigo e sócio
quis fazer umas gracinhas dizendo que eu ia fugir do duelo, mas logo tomou um
tapão na orelha e viu que a coisa era séria. Calou-se emburrado por todo o
percurso com a orelha vermelha ardendo. Desci do automóvel e liguei para a
minha amada que me encheu de palavras carinhosas, reiterou o seu amor eterno,
incentivou-me a lutar com dignidade, afirmando que estaria do meu lado sempre,
me deixando ainda mais seguro para enfrentar a peleja. Chegando a hora, abri a
porta da rua e assobiei chamando o meu alazão, o Silver, um imponente cavalo
branco de longas crinas esvoaçantes. As últimas janelas se fecharam
rapidamente. Nenhum carro transitava. Ninguém ousara sair naqueles dois
quarteirões. O bar cerrara as portas. Os pássaros, mudos, acomodaram-se entre
as folhas das árvores. Não houve um latido de qualquer incauto cão. Moscas
esconderam-se junto ao lixo. Montei Silver e atravessei os 30 metros que
separam a minha residência do ringue do doutor. Liguei para o celular dele. O
sol já se preparava para adormecer entre os lençóis das nuvens, quando abri
violentamente a porta do lugar. Anunciei-me ao pisar o primeiro degrau.
Às 15 horas Dr. João lustrou o seu revólver e o colocou no
coldre. Em concentração total para a escabrosa disputa, preferiu dispensar todo
e qualquer alimento. Queria estar ágil para que sua mão pudesse escapar dos
meus dentes afiados. Só de pensar no bafo que eu poderia estar preparando para
ele, já tinha ânsias de vômito. A monotonia de seu consultório era atroz. Havia
desmarcado outras consultas - para outras pessoas duelos desse tipo são chamados
vulgarmente de consultas -, desligara o telefone, menos o celular que dormitava
em seu bolso. Com o passar das horas começou a suar frio, deu-lhe uma
fortíssima dor de cabeça, mas preferiu não se automedicar para que pudesse
estar plenamente lúcido no momento do combate. Olhou para as suas mãos, as mãos
que tinham estórias de tantas batalhas pregressas, tanto sucesso. Movimentou o
dedo que havia sido mordido e verificou que estava plenamente recuperado. Os
seus equipamentos estavam ali como se fossem inocentes, lhe confortando e
transmitindo segurança. Todos os tipos de facas, agulhas, pontas afiadas que se
acoplam ao fatídico motorzinho, garfos, alicates, grifos, martelos, facões,
foices, espetos, tesouras, serras, boticões, materiais esterilizados numa
assepsia invejável, só para que o sangue pudesse correr suave e límpido pela
sala limpa ou se borrifasse nos aventais candidamente alvos para impressionar a
vítima. Na verdade o equipamento do Dr. João era de última geração, mas na
prática mesmo isso só serve para ludibriar seus contendores e têm as mesmas
funções dos que eu descrevi. Três assistentes haviam sido convocadas para
testemunhar a briga e auxiliar o eminente odontólogo com seus equipamentos. Era
justo, eu levava as minhas agressivas mãos, pernas e dentes. Estavam as três
moças de cabeças baixas fitando o chão de olhos vidrados quando o celular do
Dr. João soou. Falou ele gaguejante: - aaaalô. Ouviu o estrondo da sua porta
sendo aberta violentamente e minha inconfundível voz grave, profunda,
assustadoramente tranqüila dizendo: - cheguei!
Subi as escadas vagarosamente, mas com passos firmes, sem
nenhum temor, para que a expectativa da minha entrada no recinto deixasse o
doutor e suas assistentes apavorados. Ao adentrar a primeira sala lá estava Dr.
João num canto, fitando-me friamente e aparentando muita calma. Ficamos parados
a uma distância aproximada de três metros. Inteiramente estáticos. Olhando
fixamente um para o outro. Sem mover um músculo sequer. Começamos a girar
simultaneamente em sentido horário, um estudando o outro. Nesse momento
tínhamos a certeza de que nenhum de nós iria desistir. Novamente ao mesmo tempo
passamos a girar em sentido anti-horário. Rodopiamos duas vezes, quando Dr.
João subitamente perguntou-me se eu tinha assistido a derrota do futebol
brasileiro para a Argentina na olimpíada. Eu respondi que não, mas que soubera
de tudo pela internet e nos sentamos mantendo boa distância no amplo sofá.
Tiramos os coldres com as armas como se fossemos pessoas civilizadas e passamos
a desancar o anão de cérebro que treina o futebol brasileiro, comentamos o
fracasso da ginástica artrítica feminina, a coincidência de um ginasta
masculino ter caído de bunda e ter sumido a vara de uma saltadora, o judô que
para pegar um bronze deveria ter ficado nas praias cariocas, o ping que nem viu
o pong, o tênis que tem jogador que não se smash, o basquete que parece só
jogar de segunda a quinta, porque na cesta eles não jogam e a falta de visão das
empresas fabricantes de lenços de papel. Caramba, com tanto atleta chorando já
pensou o merchandising? Só um nadador brasileiro foi competir e fez um negócio
da china: levou sonho e trouxe ouro.
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