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quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

ANTIDENTISTA (Reality-Conto) Parte 5

E o papo continuou como se fossemos velhos inimigos, afinal já nos conhecíamos há mais de 15 anos. Falamos de nossas famílias, filhos, eleições, lei seca, trânsito infernal, campeonato brasileiro de futebol, nossas mulheres, mulheres dos outros... Você que acompanha esta saga percebeu a artimanha sempre utilizada pelo doutor. O objetivo era me distrair e relaxar. Eu entrei no jogo dele e emendei assunto atrás de assunto, comentando sobre o programa Provocações, do Abujamra, as últimas novidades tecnológicas da informática, falei sobre a repórter que tomou um tiro na guerra da Rússia com a Geórgia, descrevi inteirinho o show de João Gilberto mesmo sem o ter assistido, choramos copiosamente a transferência de Dorival Caimmy do mar para o céu, apelei até para falar sobre a inflação galopante que estava corroendo o real, quando o Dr. João mudou de assunto e disparou: - e você, Fábio, está bem de saúde?

Já que estávamos naquele colóquio falsamente amistoso que já alcançava meia hora, achei por bem responder detalhadamente ao inquisidor. Comecei falando de uma unha encravada que havia acometido meses atrás o meu dedão do pé direito e pretendia prosseguir falando de problemas de todo o corpo até chegar ao controle que faço do meu famoso cabelo rebelde, mas quando descrevia uma picada de pernilongo no pescoço, o homem de branco me convidou com delicadeza para conversarmos na outra sala. Entrei, as três assistentes desviaram os respectivos olhares. Ele me indicou a aconchegante poltrona. Sentei-me e a poltronamassageadora, começou a vibrar. Com a voz firme de um leonino acostumado a rugir eu brinquei: - finalmente encontramos alguém com medo nesta sala. Esta cadeira não para de tremer, gargalhei. Em uníssono foram os risos amarelos dos presentes.

O duelo continuou prometendo ser violento. Os músculos do corpo todo enrijeceram. Fechei as mãos para a eventualidade de precisar socar Dr. João e a tortura seguiu com uma pomadinha para anestesiar a aplicação da anestesia. Sendo preciso anestesiar a aplicação da anestesia, imagina o que devia doer o procedimento todo. A agulha adentrou a minha gengiva sem pedir licença. Nada senti, mas se tivesse sentido não daria os braços a torcer porque já estavam torcidos um no outro. Enquanto aguardava-se o efeito da anestesia, o lutador de branco, pensando estar controlando a batalha, começou a contar piadas, outra especialidade dos médicos das bocas. Imediatamente lembrei ao Doutor que em duelo anterior, muito mais simples, havia tomado três daquelas injeções, mais um Lexotan e ficara aceso, ligado e pronto para distribuir pancadas. Fingindo não me ouvir o algoz sorriu e começou a orientar as moças. Uma iria segurar o aspirador de salivas, porque sou considerado o campeão mundial de salivar durante intervenções cirúrgicas dentárias. Teve uma vez em que foram necessários dois aspiradores ao mesmo tempo e um limpador de pára-brisas nos óculos do dentista torturador. A segunda moça tinha uma missão ingrata. Com um espelhinho ela seria a responsável pelo controle da minha língua. Dr. João sempre comentou que não conseguia entender como a minha língua podia ter tanta força e pediu para eu não empurrar o aspirador e a mão dele com ela. Falei isso para a minha língua, mas ela não me obedeceu. Considerada uma língua irônica, ora engraçada, ora agressiva, é sempre prazerosa para as mulheres e terrível para com os odontologistas. Coitada da moça. Ela segurava o espelhinho com força suando em bicas e minha língua facilmente empurrava tudo. Até que a moça conseguiu com as duas mãos encaixar o espelhinho de um jeito que a língua ficou momentaneamente presa.

A cirurgia do tal canal nem havia realmente começado e duas moças já estavam extenuadas, desconcentrando levemente meu oponente, que chamou a terceira moça para rápidas orientações finais. Essa mulher, a mais forte de todas, seria a responsável por controlar a minha boca, impedindo que eu arrancasse involuntariamente com os dentes, num gesto espontâneo de defesa, algum dedo do Dr. João. Essa coitada corria risco altíssimo, porque seria a primeira a levar um chute na boca se eu ficasse nervoso. Sim, na boca, assim o seu chefe correria para recolocar todos os seus dentes frontais esquecendo-se de mim. Quem me conhece sabe que são raros os momentos em que me aquieto. Se não estiver meditando ou abraçado a minha amada, fico completamente agitado, andando, balançando, movimentando-me inteiro e com a mente em ebulição constante. Comecei a balançar pés e pernas mantendo-me aquecido e preparado para a execução de um golpe de tae-kwon-do na maluca impru-dente (sem trocadilho) assistente de dentista. Tudo pronto e Dr. João, ainda tentando usar a sua paciente psicologia, falou-me que nem ia doer nada, dando-me várias explicações científicas que não escutei. O motor rodou e a ponta daquele aparelho maldito começou a roçar o ferido molar. As três moças, de olhos arregalados, lutaram bravamente com minha boca, língua e dentes enquanto o dentista executava a tortura com muito esmero, sempre perguntando se estava doendo, claro que para ter certeza de que estava doendo muito. Mas eu e minha coragem nunca poderíamos perder esse duelo que se iniciava e disse que estava tudo bem. As cãibras atacaram as moças que começaram a revirar os olhinhos, quando Dr. João falou: - Xi! Este dente não tem salvação! Eu respondi: - e você também não tem salvação! Foi feita uma pausa para que mais uma radiografia fosse tirada, momento em que as moças caíram estateladas no chão. A nova sentença foi dada a seco: o dente estava morto e teria que ser arrancado! Novo duelo, agora muito mais sanguinário, foi agendado para a próxima semana.

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