E o papo
continuou como se fossemos velhos inimigos, afinal já nos conhecíamos há mais
de 15 anos. Falamos de nossas famílias, filhos, eleições, lei seca, trânsito
infernal, campeonato brasileiro de futebol, nossas mulheres, mulheres dos
outros... Você que acompanha esta saga percebeu a artimanha sempre utilizada pelo
doutor. O objetivo era me distrair e relaxar. Eu entrei no jogo dele e emendei
assunto atrás de assunto, comentando sobre o programa Provocações, do Abujamra,
as últimas novidades tecnológicas da informática, falei sobre a repórter que
tomou um tiro na guerra da Rússia com a Geórgia, descrevi inteirinho o show de
João Gilberto mesmo sem o ter assistido, choramos copiosamente a transferência
de Dorival Caimmy do mar para o céu, apelei até para falar sobre a inflação
galopante que estava corroendo o real, quando o Dr. João mudou de assunto e
disparou: - e você, Fábio, está bem de saúde?
Já que estávamos
naquele colóquio falsamente amistoso que já alcançava meia hora, achei por bem
responder detalhadamente ao inquisidor. Comecei falando de uma unha encravada
que havia acometido meses atrás o meu dedão do pé direito e pretendia
prosseguir falando de problemas de todo o corpo até chegar ao controle que faço
do meu famoso cabelo rebelde, mas quando descrevia uma picada de pernilongo no
pescoço, o homem de branco me convidou com delicadeza para conversarmos na
outra sala. Entrei, as três assistentes desviaram os respectivos olhares. Ele
me indicou a aconchegante poltrona. Sentei-me e a poltronamassageadora, começou
a vibrar. Com a voz firme de um leonino acostumado a rugir eu brinquei: -
finalmente encontramos alguém com medo nesta sala. Esta cadeira não para de
tremer, gargalhei. Em uníssono foram os risos amarelos dos presentes.
O duelo
continuou prometendo ser violento. Os músculos do corpo todo enrijeceram.
Fechei as mãos para a eventualidade de precisar socar Dr. João e a tortura
seguiu com uma pomadinha para anestesiar a aplicação da anestesia. Sendo
preciso anestesiar a aplicação da anestesia, imagina o que devia doer o
procedimento todo. A agulha adentrou a minha gengiva sem pedir licença. Nada
senti, mas se tivesse sentido não daria os braços a torcer porque já estavam
torcidos um no outro. Enquanto aguardava-se o efeito da anestesia, o lutador de
branco, pensando estar controlando a batalha, começou a contar piadas, outra
especialidade dos médicos das bocas. Imediatamente lembrei ao Doutor que em
duelo anterior, muito mais simples, havia tomado três daquelas injeções, mais
um Lexotan e ficara aceso, ligado e pronto para distribuir pancadas. Fingindo não
me ouvir o algoz sorriu e começou a orientar as moças. Uma iria segurar o
aspirador de salivas, porque sou considerado o campeão mundial de salivar
durante intervenções cirúrgicas dentárias. Teve uma vez em que foram
necessários dois aspiradores ao mesmo tempo e um limpador de pára-brisas nos
óculos do dentista torturador. A segunda moça tinha uma missão ingrata. Com um
espelhinho ela seria a responsável pelo controle da minha língua. Dr. João
sempre comentou que não conseguia entender como a minha língua podia ter tanta
força e pediu para eu não empurrar o aspirador e a mão dele com ela. Falei isso
para a minha língua, mas ela não me obedeceu. Considerada uma língua irônica,
ora engraçada, ora agressiva, é sempre prazerosa para as mulheres e terrível
para com os odontologistas. Coitada da moça. Ela segurava o espelhinho com
força suando em bicas e minha língua facilmente empurrava tudo. Até que a moça
conseguiu com as duas mãos encaixar o espelhinho de um jeito que a língua ficou
momentaneamente presa.
A cirurgia do
tal canal nem havia realmente começado e duas moças já estavam extenuadas,
desconcentrando levemente meu oponente, que chamou a terceira moça para rápidas
orientações finais. Essa mulher, a mais forte de todas, seria a responsável por
controlar a minha boca, impedindo que eu arrancasse involuntariamente com os
dentes, num gesto espontâneo de defesa, algum dedo do Dr. João. Essa coitada
corria risco altíssimo, porque seria a primeira a levar um chute na boca se eu
ficasse nervoso. Sim, na boca, assim o seu chefe correria para recolocar todos
os seus dentes frontais esquecendo-se de mim. Quem me conhece sabe que são
raros os momentos em que me aquieto. Se não estiver meditando ou abraçado a
minha amada, fico completamente agitado, andando, balançando, movimentando-me
inteiro e com a mente em ebulição constante. Comecei a balançar pés e pernas
mantendo-me aquecido e preparado para a execução de um golpe de tae-kwon-do na
maluca impru-dente (sem trocadilho) assistente de dentista. Tudo pronto e Dr.
João, ainda tentando usar a sua paciente psicologia, falou-me que nem ia doer
nada, dando-me várias explicações científicas que não escutei. O motor rodou e
a ponta daquele aparelho maldito começou a roçar o ferido molar. As três moças,
de olhos arregalados, lutaram bravamente com minha boca, língua e dentes
enquanto o dentista executava a tortura com muito esmero, sempre perguntando se
estava doendo, claro que para ter certeza de que estava doendo muito. Mas eu e
minha coragem nunca poderíamos perder esse duelo que se iniciava e disse que
estava tudo bem. As cãibras atacaram as moças que começaram a revirar os
olhinhos, quando Dr. João falou: - Xi! Este dente não tem salvação! Eu
respondi: - e você também não tem salvação! Foi feita uma pausa
para que mais uma radiografia fosse tirada, momento em que as moças caíram
estateladas no chão. A nova sentença foi dada a seco: o dente estava morto e
teria que ser arrancado! Novo duelo, agora muito mais sanguinário, foi agendado para a próxima semana.
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