Acordou, olhou a
data no celular e descobriu que vinte e oito meses haviam se passado. Tinha
composto uma centena de músicas, escrito outra centena de poemas e iria iniciar
o texto de um livro intitulado O Que É Felicidade? Nem sentira o tempo
transcorrer, pois estivera em processo absurdo e vertiginoso de criação. Nesse
período ele não tinha colocado os pés pra fora da Casa!.Nem no quintal tinha
ido. Abriu a janela do quarto e lá estava o Fiat Fiesta que pareceu piscar seus
faróis e lanternas para ele de novo. João já não sabia se isso era coisa da sua
imaginação fértil ou se realmente o Fiat Fiesta interagia com ele.
Desceu para
tomar café e o foi servindo mecanicamente da garrafa térmica, sem se aperceber
que o líquido de aroma peculiar fumegou parecendo ter sido feito naquele
instante. Abriu a geladeira e ela estava completa de alimentos.
Sobressaltou-se. Não era possível ela estar tão cheia como no dia em que chegara.
Abriu os armários e petrificou. Todos continuavam repletos de mantimentos, como
se nada ali tivesse sido utilizado até então. Alguém estava brincando com ele
ou então vinte e oito meses não haviam passado coisa nenhuma. Mas como teria
escrito tanto, como compusera tanto em um só dia? Mesmo extremamente satisfeito
com o resultado das suas obras, não era possível compreender o que estava
acontecendo. Ele estava perdendo completamente a noção de tempo. E estava
receoso de perder também a noção de espaço. Afinal, onde estava mesmo? Que
Casa! era aquela, que mistério ela continha? Ele tinha despertado de algum
transe? Só se tivesse fumado um saudoso cigarro de haxixe, mas não se recordava
disso. Foi até a entrada e pesquisou a caixa de correio. Lá estava o contrato
de cessão da Casa! com duração indeterminada e as contas de todas as despesas
em débito automático: eletricidade, água, gás encanado, telefone, internet, tv
a cabo e outras. Mas e o lixo? Onde fora parar o lixo? Pegou as chaves do
carro, foi até o Fiesta e ligou o motor. Funcionou como se tivesse sido ligado
ontem. Preocupado resolveu pegar todos os textos e partituras e sair dali com
suas dúvidas, no intuito de confirmar com alguém que ano era, que dia, que
horas. Mas ao invés de sair ligou o enorme telão da sala e ficou percorrendo os
canais acompanhando as notícias.
O mundo mudara
bastante em pouco mais de dois anos. O Brasil era governado por uma pessoa
completamente desconhecida, o que nem mais se considerava uma novidade, mas
nunca houvera visto aquele político que falava dos grandes benefícios sociais e
econômicos alcançados em sua curta gestão. Seria verdade, só pra variar? Não
existiam mais as Coréias, que agora faziam parte da China. Os Estados Unidos
haviam sido assolados por uma guerra civil fratricida. O Irã havia engolido o
Iraque que havia absorvido a Arábia Saudita que havia anexado o Kuwait e o
Qatar. A Síria milagrosamente estava em paz. Israel e Palestina continuavam em
guerra. A Europa estava sob liderança da Alemanha. Ainda estava digerindo as
informações quando tocou a campainha. Um visitante inesperado chegara. O
curioso João foi assoberbadamente ver quem estava na porta da Casa!.
Ao abrir a porta
João viu que uma esbelta morena de olhos verdes e cabelos pretos aguardava ser
atendida parada em frente ao portão. A mulher admirava detalhadamente a
imponente arquitetura da Casa!. Nas costas apoiava uma grande mochila roxa.
Vestia camiseta, calça e jaqueta jeans tão surradas quanto as roupas de João.
Destacavam-se em seus pés, delicados tênis cor de rosa, tão novos que pareciam
ter saído da loja naquela hora. Completava a cena da morena na paisagem da
calçada, uma bolsa de crochê colorida que ela usava atravessada no corpo, uma
sacola de pano cheia de objetos que segurava com a mão esquerda, óculos escuros
na testa e um envelope na mão direita. João se aproximou do portão
vagarosamente, como se quisesse saborear mais um pouco a genuína beleza da
visitante, mas ao passar pelo Fiesta o automóvel buzinou de forma estridente,
despertando-o do estupor em que se encontrava. Apressou os passos e
cumprimentou a mulher, que aparentava ter aproximadamente 35 anos, com um olá
posso ajudar? Ela respondeu que sim, disse que se chamava Paolla e estava
aceitando o convite para se incorporar à Trupe da Casa! juntamente com João
Amorim. Você é o João? perguntou a morena com um sorriso encantador e
entregando o envelope ao atônito anfitrião. O envelope dizia:
À Paolla Acarella
Temos a grata
satisfação de contratá-la como cantora e pianista, convidando-a para
integrar-se imediatamente à Trupe da Casa! por tempo indeterminado. A
remuneração de R$ 10 mil reais será depositada em vossa conta corrente todo primeiro
dia do mês, enquanto permanecer na morada artística. Compareça
impreterivelmente amanhã ao local acima mencionado com esta correspondência.
Leve somente os seus principais pertences pessoais e os utensílios necessários
para a sua atividade profissional.
Atenciosamente,
A Casa!
João Amorim
João não
entendeu nada, mas reconheceu a sua assinatura no documento. O que será que
estava acontecendo? Ele apenas queria um lar para se aconchegar, criar suas
canções e poesias, e discorrer em seu livro sobre felicidade. É certo que
estava gostando e muito da situação na Casa!,ainda mais agora com a presença da
parceira Paolla, para quem solicitou que entrasse, ciceroneando a cantora por
todos os cantos do lugar. Ela se instalou no quarto ao lado do de João, também
de frente para a rua. Foi tomar um banho bastante demorado na Jacuzzi do seu
toilette. Antes da moça, desceu primeiro o seu marcante perfume misto de
jasmim, lírio e tangerina. Ela dirigiu-se diretamente ao piano e começou a
tocar e cantar. João surpreendeu-se com a voz de Paolla. Além de exímia
instrumentista, ela emitia um canto de sereia, sensual, suingado, de afinação
impecável. A acústica privilegiada da Casa! contribuiu para realçar a potência
e extensão vocal da artista. Controlando rapidamente a surpresa e a emoção,
João pegou o violão e começou a improvisar acompanhando Paolla. Na segunda
canção já estavam interpretando em dueto como se fossem da mesma banda há anos.
João sentiu-se totalmente preparado para avançar no texto do seu livro sobre felicidade.
Eles não perceberam, mas o ar da Casa! exalava alegria, dando até a impressão
de que paredes, teto e piso balouçavam milimetricamente na cadência das notas
musicais.
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