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quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

A CASA! - Parte 4


Acordou, olhou a data no celular e descobriu que vinte e oito meses haviam se passado. Tinha composto uma centena de músicas, escrito outra centena de poemas e iria iniciar o texto de um livro intitulado O Que É Felicidade? Nem sentira o tempo transcorrer, pois estivera em processo absurdo e vertiginoso de criação. Nesse período ele não tinha colocado os pés pra fora da Casa!.Nem no quintal tinha ido. Abriu a janela do quarto e lá estava o Fiat Fiesta que pareceu piscar seus faróis e lanternas para ele de novo. João já não sabia se isso era coisa da sua imaginação fértil ou se realmente o Fiat Fiesta interagia com ele.

Desceu para tomar café e o foi servindo mecanicamente da garrafa térmica, sem se aperceber que o líquido de aroma peculiar fumegou parecendo ter sido feito naquele instante. Abriu a geladeira e ela estava completa de alimentos. Sobressaltou-se. Não era possível ela estar tão cheia como no dia em que chegara. Abriu os armários e petrificou. Todos continuavam repletos de mantimentos, como se nada ali tivesse sido utilizado até então. Alguém estava brincando com ele ou então vinte e oito meses não haviam passado coisa nenhuma. Mas como teria escrito tanto, como compusera tanto em um só dia? Mesmo extremamente satisfeito com o resultado das suas obras, não era possível compreender o que estava acontecendo. Ele estava perdendo completamente a noção de tempo. E estava receoso de perder também a noção de espaço. Afinal, onde estava mesmo? Que Casa! era aquela, que mistério ela continha? Ele tinha despertado de algum transe? Só se tivesse fumado um saudoso cigarro de haxixe, mas não se recordava disso. Foi até a entrada e pesquisou a caixa de correio. Lá estava o contrato de cessão da Casa! com duração indeterminada e as contas de todas as despesas em débito automático: eletricidade, água, gás encanado, telefone, internet, tv a cabo e outras. Mas e o lixo? Onde fora parar o lixo? Pegou as chaves do carro, foi até o Fiesta e ligou o motor. Funcionou como se tivesse sido ligado ontem. Preocupado resolveu pegar todos os textos e partituras e sair dali com suas dúvidas, no intuito de confirmar com alguém que ano era, que dia, que horas. Mas ao invés de sair ligou o enorme telão da sala e ficou percorrendo os canais acompanhando as notícias.

O mundo mudara bastante em pouco mais de dois anos. O Brasil era governado por uma pessoa completamente desconhecida, o que nem mais se considerava uma novidade, mas nunca houvera visto aquele político que falava dos grandes benefícios sociais e econômicos alcançados em sua curta gestão. Seria verdade, só pra variar? Não existiam mais as Coréias, que agora faziam parte da China. Os Estados Unidos haviam sido assolados por uma guerra civil fratricida. O Irã havia engolido o Iraque que havia absorvido a Arábia Saudita que havia anexado o Kuwait e o Qatar. A Síria milagrosamente estava em paz. Israel e Palestina continuavam em guerra. A Europa estava sob liderança da Alemanha. Ainda estava digerindo as informações quando tocou a campainha. Um visitante inesperado chegara. O curioso João foi assoberbadamente ver quem estava na porta da Casa!.

Ao abrir a porta João viu que uma esbelta morena de olhos verdes e cabelos pretos aguardava ser atendida parada em frente ao portão. A mulher admirava detalhadamente a imponente arquitetura da Casa!. Nas costas apoiava uma grande mochila roxa. Vestia camiseta, calça e jaqueta jeans tão surradas quanto as roupas de João. Destacavam-se em seus pés, delicados tênis cor de rosa, tão novos que pareciam ter saído da loja naquela hora. Completava a cena da morena na paisagem da calçada, uma bolsa de crochê colorida que ela usava atravessada no corpo, uma sacola de pano cheia de objetos que segurava com a mão esquerda, óculos escuros na testa e um envelope na mão direita. João se aproximou do portão vagarosamente, como se quisesse saborear mais um pouco a genuína beleza da visitante, mas ao passar pelo Fiesta o automóvel buzinou de forma estridente, despertando-o do estupor em que se encontrava. Apressou os passos e cumprimentou a mulher, que aparentava ter aproximadamente 35 anos, com um olá posso ajudar? Ela respondeu que sim, disse que se chamava Paolla e estava aceitando o convite para se incorporar à Trupe da Casa! juntamente com João Amorim. Você é o João? perguntou a morena com um sorriso encantador e entregando o envelope ao atônito anfitrião. O envelope dizia:

À Paolla Acarella
Temos a grata satisfação de contratá-la como cantora e pianista, convidando-a para integrar-se imediatamente à Trupe da Casa! por tempo indeterminado. A remuneração de R$ 10 mil reais será depositada em vossa conta corrente todo primeiro dia do mês, enquanto permanecer na morada artística. Compareça impreterivelmente amanhã ao local acima mencionado com esta correspondência. Leve somente os seus principais pertences pessoais e os utensílios necessários para a sua atividade profissional.
Atenciosamente,
A Casa!
João Amorim

João não entendeu nada, mas reconheceu a sua assinatura no documento. O que será que estava acontecendo? Ele apenas queria um lar para se aconchegar, criar suas canções e poesias, e discorrer em seu livro sobre felicidade. É certo que estava gostando e muito da situação na Casa!,ainda mais agora com a presença da parceira Paolla, para quem solicitou que entrasse, ciceroneando a cantora por todos os cantos do lugar. Ela se instalou no quarto ao lado do de João, também de frente para a rua. Foi tomar um banho bastante demorado na Jacuzzi do seu toilette. Antes da moça, desceu primeiro o seu marcante perfume misto de jasmim, lírio e tangerina. Ela dirigiu-se diretamente ao piano e começou a tocar e cantar. João surpreendeu-se com a voz de Paolla. Além de exímia instrumentista, ela emitia um canto de sereia, sensual, suingado, de afinação impecável. A acústica privilegiada da Casa! contribuiu para realçar a potência e extensão vocal da artista. Controlando rapidamente a surpresa e a emoção, João pegou o violão e começou a improvisar acompanhando Paolla. Na segunda canção já estavam interpretando em dueto como se fossem da mesma banda há anos. João sentiu-se totalmente preparado para avançar no texto do seu livro sobre felicidade. Eles não perceberam, mas o ar da Casa! exalava alegria, dando até a impressão de que paredes, teto e piso balouçavam milimetricamente na cadência das notas musicais.

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