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sábado, 14 de dezembro de 2019

O HOMEM QUE IA MORRER DEPOIS DE AMANHÁ - Parte 4

E assim seguiu o homem que ia morrer amanhã, feito um serial killer podando com a tesoura enorme todas as línguas azaradas que cruzavam com sua raiva. Justiceiro do vocábulo, defensor das aurículas, cortou a língua do imprudente gerente do banco em pleno restaurante lotado, a de um político que estava em um comício prometendo resolver todos os problemas da cidade, a de um jornalista esportivo que criticava o seu coringão em um programa transmitido ao vivo pela televisão, a de um estafante animador de programa dominical de auditório, as de duas fofoqueiras que maldiziam a vida dos vizinhos, a de um advogado inescrupuloso que acabara de inocentar um estuprador, a de uma recepcionista que o atendeu grosseiramente em uma lanchonete, as de um casal que estava brigando e discutindo a relação em público, a de um professor que estava ralhando com seus alunos na porta de um cursinho, afirmando que reprovaria a todos, a de um cantor brega que desafinou bem na hora em que ele entrou em uma casa noturna na happy hour para tomar uns tragos. Claro que a notícia do ceifador de línguas havia se espalhado pela cidade, devido à profusão de sangue e mortes provocadas pelo homem em tão pouco tempo. Todas aquelas ações haviam acontecido do nascer do sol até o início noite. A polícia, um tanto quanto atônita, passou a perseguir as pistas do criminoso, que apesar de ser descrito como extremamente forte e corpulento, se movia lépido pelas ruas. Bailarino e compositor de um balé macabro, ele ia deixando um rastro de padecimentos e barbaridades por onde passava. E suas assinaturas eram, além das atrocidades, a aflição e a quietude que ia causando não só pelo temor, mas pelas línguas cortadas das suas vítimas que choravam suas mágoas sem palavras até a morte.

As emissoras de rádio e televisão cobriram e divulgaram a onda de assassinatos e línguas trinchadas quase que em tempo real, o que fez especialistas tentarem traçar o perfil psicológico do criminoso: segundo eles tratava-se de um psicopata da pior espécie. Desumano, insensível, um homem que se fizera pacato e subalterno, apresentara-se tímido e covarde a vida toda, mas que de repente tivera aflorado por algum motivo ainda desconhecido o seu lado negativo onde acumulara extremo ódio, provavelmente devido a anos de humilhações e frustrações. O que os analistas podiam dizer é que aquele homem parecia não ter nada a perder, não mostrava preocupação em se esconder, não temia a prisão ou a morte e era uma bomba permanentemente acionada para explosão ao menor estímulo. Tudo isso o tornava extremamente perigoso e acabava dificultando a sua localização. O que os intrigava mais do que a motivação dos crimes, eram as línguas ceifadas de todas as bocas. Tudo começara com a esposa, passara por pessoas comuns como o dono do bar, o cobrador do ônibus e o vendedor. Depois pelo patrão e os colegas de trabalho. Na seqüência, com a exceção do gerente do banco, nenhuma das outras pessoas atacadas havia tido contato anterior com o carrasco: religioso, político, advogado, cronista esportivo, animador de TV, professor, fofoqueiras, casal, garçonete, músico. Os analistas conjecturaram, sem saber que o homem era totalmente desocupado de discernimento, que alguma mensagem aquela mente doentia estava tentando passar. Talvez ele estivesse obcecado querendo calar a boca da sociedade e das suas instituições consideradas mais importantes. Eles não faziam idéia que o homem descobrira que ia morrer amanhã.

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