No meio da tarde
o Fiat Fiesta regateou avançar implorando por combustível. João colocou apenas
vinte reais de gasolina comum, para que o automóvel não acostumasse mal o seu
estômago feito cachorrinhos que não comem somente ração e exigem carninhas,
potinhos de patê, bolachinhas e ossinhos dia inteiro. Revigorado, o carro
avançou alguns quarteirões pelas entranhas da Bela Vista, bairro tradicional da
cidade, outrora famoso centro da boemia e gastronomia Paulistana. Atualmente se
tornou uma região muito mais pacata e comportada, talvez pela longevidade que
tenha lhe acalmado os ânimos e arroubos juvenis. João avistou em uma rua
tranqüila e suavemente íngreme, entre uma esquina e um terreno enorme
arborizado e gramado, uma casa amarela que destoava das outras casas de cores
ocres, cinzas, brancas, todas relativamente pálidas. Isolada, ela era pintada
num tom vibrante, mas agradável de ver. O grande e antigo sobrado de
arquitetura no estilo colonial português, influência da grande massa de
imigrantes que veio para o Brasil em séculos passados, parecia ter sido
reformado recentemente. Todas as janelas e portas abertas lhe davam um ar de
liberdade e segurança que instigava a uma visitação.
A placa
“aluga-se” saltou aos olhos de João. Ele identificou no mesmo instante que
aquela poderia ser a casa dele. Apesar de exagerada para um cara sozinho, seria
perfeita para um ambiente de ensaios artísticos, um estúdio, ou um bordel,
ruminou sacanamente João. Ele não sabia que a Casa! também o estava analisando
detalhadamente desde que apontara no início da rua até agora, quando descera do
carro com seus velhos jeans surrados, os óculos escuros de lentes redondas e o
cabelo longo encaracolado de hippie perdido em pleno ano de 2018 com cinqüenta
e tantos anos de idade. Parecia com os antigos freqüentadores dos bares e
espaços cults que outrora haviam povoado aquele bairro. João talvez fosse um
remanescente perdido daquela tribo em extinção que espalhou seus índios pelo
mundo. Um mundo que os devorou feito um canibal de sonhos e ideologias. A Casa!
vislumbrou a boa aura de João e harmonizou-se imediatamente com o ser
diferenciado, náufrago da sociedade que amarrava o bote em seu cais. Por sua
vez João nem perguntou se podia. O portão estava aberto, então ele foi
colocando o Fiat Fiesta na garagem como se ali fosse há anos o seu lar.
Impressionante que João vivenciou uma estranha sensação de euforia ao desligar
o motor do carro e ouvir o silêncio percorrendo a Casa! carregado pela corrente
de vento. Ele não soube, por ser imperceptível ainda à sua sensibilidade e a de
qualquer outra pessoa, mas a Casa! tremeu em seus alicerces reconhecendo ali o
futuro habitante de seu corpo feito de cimento, madeira, ferro, fios, canos,
terra, plantas, emotividade exacerbada e sempiterna história.
Antes de se
desincorporar do carro, João acariciou o volante e agradeceu ao Fiat Fiesta por
tê-lo levado até ali com sua usual maneira prestimosa. Acendeu um cigarro e
tragou a fumaça profundamente sem nenhuma pressa porque já estava lá. O seu
sossego seria enervante para alguém que perto dele estivesse. Mas naquele momento
de introspecção ele meditava sozinho com todos os seus pertences, o desgastado
Fiesta de várias batalhas e a Casa!. Muita coisa passou pela cabeça de João
durante aquele pito. Lembrou de várias mulheres que amara, bem como também das
que não amara. Umas e outras tinham sido casos únicos em sua vida. Os
relacionamentos sempre levados às últimas conseqüências do prazer e da dor, que
várias vezes conviveram lado a lado, cúmplices das suas inebriantes e
avassaladoras paixões. Ficou rememorando as passagens mais significativas da
sua vida sem nem saber por quê. Será que pegara o cigarro de sonhadores?
Passeou em
muitos pensamentos, até que um velho esbaforido chegou àquela habitação montado
em uma vistosa moto Harley-Davidson Sportster. O homem se apresentou como sendo
procurador da Casa!. Parecia um profeta, de compridos e revoltos cabelos
brancos, com uma barba espessa e longuíssima enfeitando o rosto redondo. João
desceu do carro e o ancião foi perguntando se ele havia gostado, se ele queria
ficar, comentou que a Casa! portava excelentes condições, totalmente reformada.
Ele não cobraria aluguel, cederia a residência em troca da presença e de cuidados
dele para com a Casa!. Não tinha tempo nenhum para colóquio. Ia viajar para o exterior
dali a duas horas, deu as chaves e o seu cartão pessoal a João, prometeu mandar
o contrato pelo correio para oficializarem o acordo. Abraçou o estupefacto
músico, subiu na moto e partiu sem que ele dissesse uma só palavra em resposta.
João ficou parado com as chaves da Casa! nas mãos, vendo o provecto dobrar a
esquina com a moto acelerada. Havia escurecido. João olhou para a Casa! e viu
que todas as janelas estavam fechadas. Só a porta da frente permanecia
escancarada. Estranhou, porque não lhe evocava do vetusto ter entrado para
aferrolhar tudo. Ele foi até a porta e a trancou por fora. Passou o cadeado no
portão da rua. Foi pegar mais um cigarro e viu que o maço estava cheio. Também
achou isso esquisito porque tinha a certeza de que só tinha um cigarro naquele
maço ao chegar a Casa!. Será que os devaneios tinham sido tão longos que ele
nem percebera as horas passarem sem fumar? Tirou a placa de aluga-se do muro,
acendeu o tabaco e ficou lá encostado no carro olhando a lua com ânsia de
uivar. Sentia-se ótimo, mas não queria entrar naquela noite na Casa!. Preferiu
adormecer no carro e esperar o sol nascer. Compreensiva, a Casa! manteve-se
imóvel a madrugada toda como se fora uma casa normal, na expectativa de João
acordar.
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