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quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

A CASA! - Parte 2


No meio da tarde o Fiat Fiesta regateou avançar implorando por combustível. João colocou apenas vinte reais de gasolina comum, para que o automóvel não acostumasse mal o seu estômago feito cachorrinhos que não comem somente ração e exigem carninhas, potinhos de patê, bolachinhas e ossinhos dia inteiro. Revigorado, o carro avançou alguns quarteirões pelas entranhas da Bela Vista, bairro tradicional da cidade, outrora famoso centro da boemia e gastronomia Paulistana. Atualmente se tornou uma região muito mais pacata e comportada, talvez pela longevidade que tenha lhe acalmado os ânimos e arroubos juvenis. João avistou em uma rua tranqüila e suavemente íngreme, entre uma esquina e um terreno enorme arborizado e gramado, uma casa amarela que destoava das outras casas de cores ocres, cinzas, brancas, todas relativamente pálidas. Isolada, ela era pintada num tom vibrante, mas agradável de ver. O grande e antigo sobrado de arquitetura no estilo colonial português, influência da grande massa de imigrantes que veio para o Brasil em séculos passados, parecia ter sido reformado recentemente. Todas as janelas e portas abertas lhe davam um ar de liberdade e segurança que instigava a uma visitação.

A placa “aluga-se” saltou aos olhos de João. Ele identificou no mesmo instante que aquela poderia ser a casa dele. Apesar de exagerada para um cara sozinho, seria perfeita para um ambiente de ensaios artísticos, um estúdio, ou um bordel, ruminou sacanamente João. Ele não sabia que a Casa! também o estava analisando detalhadamente desde que apontara no início da rua até agora, quando descera do carro com seus velhos jeans surrados, os óculos escuros de lentes redondas e o cabelo longo encaracolado de hippie perdido em pleno ano de 2018 com cinqüenta e tantos anos de idade. Parecia com os antigos freqüentadores dos bares e espaços cults que outrora haviam povoado aquele bairro. João talvez fosse um remanescente perdido daquela tribo em extinção que espalhou seus índios pelo mundo. Um mundo que os devorou feito um canibal de sonhos e ideologias. A Casa! vislumbrou a boa aura de João e harmonizou-se imediatamente com o ser diferenciado, náufrago da sociedade que amarrava o bote em seu cais. Por sua vez João nem perguntou se podia. O portão estava aberto, então ele foi colocando o Fiat Fiesta na garagem como se ali fosse há anos o seu lar. Impressionante que João vivenciou uma estranha sensação de euforia ao desligar o motor do carro e ouvir o silêncio percorrendo a Casa! carregado pela corrente de vento. Ele não soube, por ser imperceptível ainda à sua sensibilidade e a de qualquer outra pessoa, mas a Casa! tremeu em seus alicerces reconhecendo ali o futuro habitante de seu corpo feito de cimento, madeira, ferro, fios, canos, terra, plantas, emotividade exacerbada e sempiterna história.

Antes de se desincorporar do carro, João acariciou o volante e agradeceu ao Fiat Fiesta por tê-lo levado até ali com sua usual maneira prestimosa. Acendeu um cigarro e tragou a fumaça profundamente sem nenhuma pressa porque já estava lá. O seu sossego seria enervante para alguém que perto dele estivesse. Mas naquele momento de introspecção ele meditava sozinho com todos os seus pertences, o desgastado Fiesta de várias batalhas e a Casa!. Muita coisa passou pela cabeça de João durante aquele pito. Lembrou de várias mulheres que amara, bem como também das que não amara. Umas e outras tinham sido casos únicos em sua vida. Os relacionamentos sempre levados às últimas conseqüências do prazer e da dor, que várias vezes conviveram lado a lado, cúmplices das suas inebriantes e avassaladoras paixões. Ficou rememorando as passagens mais significativas da sua vida sem nem saber por quê. Será que pegara o cigarro de sonhadores?

Passeou em muitos pensamentos, até que um velho esbaforido chegou àquela habitação montado em uma vistosa moto Harley-Davidson Sportster. O homem se apresentou como sendo procurador da Casa!. Parecia um profeta, de compridos e revoltos cabelos brancos, com uma barba espessa e longuíssima enfeitando o rosto redondo. João desceu do carro e o ancião foi perguntando se ele havia gostado, se ele queria ficar, comentou que a Casa! portava excelentes condições, totalmente reformada. Ele não cobraria aluguel, cederia a residência em troca da presença e de cuidados dele para com a Casa!. Não tinha tempo nenhum para colóquio. Ia viajar para o exterior dali a duas horas, deu as chaves e o seu cartão pessoal a João, prometeu mandar o contrato pelo correio para oficializarem o acordo. Abraçou o estupefacto músico, subiu na moto e partiu sem que ele dissesse uma só palavra em resposta. João ficou parado com as chaves da Casa! nas mãos, vendo o provecto dobrar a esquina com a moto acelerada. Havia escurecido. João olhou para a Casa! e viu que todas as janelas estavam fechadas. Só a porta da frente permanecia escancarada. Estranhou, porque não lhe evocava do vetusto ter entrado para aferrolhar tudo. Ele foi até a porta e a trancou por fora. Passou o cadeado no portão da rua. Foi pegar mais um cigarro e viu que o maço estava cheio. Também achou isso esquisito porque tinha a certeza de que só tinha um cigarro naquele maço ao chegar a Casa!. Será que os devaneios tinham sido tão longos que ele nem percebera as horas passarem sem fumar? Tirou a placa de aluga-se do muro, acendeu o tabaco e ficou lá encostado no carro olhando a lua com ânsia de uivar. Sentia-se ótimo, mas não queria entrar naquela noite na Casa!. Preferiu adormecer no carro e esperar o sol nascer. Compreensiva, a Casa! manteve-se imóvel a madrugada toda como se fora uma casa normal, na expectativa de João acordar.

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