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sábado, 14 de dezembro de 2019

A BAILARINA, O BARMAN E O PIANISTA - Parte 2

Eu não queria voltar ali. Eu tinha a certeza de que não ia ser igual. Eu acreditava que nunca um raio cai no mesmo lugar duas vezes. Mas eu, sozinho noutra madrugada fria, saí desprovido de sentimento, de expectativa e de esperança. O carro me guia pela Avenida 23 de Maio muito rapidamente. Eu gosto de acelerar a vida, mas não tenho mais coragem de arriscar tanto. Não pelo medo da dor. Não pelo medo de morrer. Apenas medo de algo muito superior à dor e à morte. Vou assim até quando acho que o automóvel parece se desintegrar. Assim como os meus sentimentos confusos, arremedos de células que pensam tentando se juntar, para formar novamente o desenho de uma alma que habitará um corpo, que terá um coração pulsando e um cérebro independentemente rebelde, que terá vida própria para fazer o meu pobre Fiat Palio ir até o endereço daquele bar. O bar onde eu conheci o excelente e estranho pianista latino, o velho barman simpático carcomido pelo tempo e ela, a bailarina. Ela, de quem eu certa noite consegui suprimir a mágoa, a solidão e a tristeza sem trocar uma palavra. E que por isso recebi o beijo mais repleto de amor sincero que eu já tive oportunidade de ter. Será que a verei esta noite?

O carro se estaciona bem à frente do bar. Fico dentro dele lembrando cada detalhe ocorrido naquela madrugada mágica e rara de junho. A bailarina solitária e melancólica, sua beleza e corpo estonteantes, o charme de suas mãos pegando a bebida com delicadeza, a boca carnuda tocando o copo sensualmente com enorme desejo. Ela bebia aquele wisky com volúpia, certamente para acalentar a sua alma que se distanciava e ia visitar os gélidos recônditos da tristeza em que estava mergulhada.

Aqui de fora não dá para ouvir se o estranho pianista latino toca seu jazz. Espero que sim, porque no mínimo eu e minhas dúvidas passaremos momentos acompanhados por uma ótima música e pelo velho e simpático barman. Um profissional com a experiência de anos lidando com gente de todos os tipos nas mais variadas situações: embriagados, educados, grosseiros, atenciosos, paqueradores, silenciosos, espalhafatosos, ricos, miseráveis, tarados, idiotas, geniais...

Hesito muito em sair do automóvel. Chego a ligar o motor para ir embora e ficar com a anterior imagem surpreendente e inacreditável que ainda permanece na minha cabeça. A sensação do beijo delicioso que ficou na minha boca até hoje. O beijo da bailarina renascida em alegria ao se despedir de mim naquela noite. Rememoro os olhares assustados do barman e do pianista quando ela me abraçou forte. Não queria correr o risco de entrar no bar e não acontecer nada desta vez. Mas, teimosa e desafiadoramente, entrei.

Os meus olhos passeiam pelo bar e só então reparo quão agradável é a penumbra do seu ambiente aconchegante. O som do piano chega aos meus ouvidos ao mesmo tempo em que eu vejo uma mulher sentada no mesmo banquinho da bailarina naquela noite inesquecível. Será que é ela? Só pode ser ela com aqueles longos cabelos soltos, a postura impecavelmente ereta e nobre. Mas não é possível. Seria muita coincidência ela ter voltado ao bar no mesmo dia que eu. Ando três passos no ritmo de “Chovendo na Roseira”. Assim que o pianista me vê faz aquela esquisita mesura com a cabeça, bastante veemente e engraçada desta vez. O músico realmente ficou feliz quando me viu. Sabe que chegou alguém para prestar atenção ao seu concerto, reverenciando-o com o famoso estalar de dedos. O velho barman está ocupado preparando alguns drinks coloridos, enfeitando-os com rodelas de laranjas e canudinhos. E a mulher eu agora tenho quase certeza de que é a bailarina. É impressionante essa situação, mas só pode ser ela. Mais de duas semanas querendo saber se a bailarina é de verdade, se tudo aquilo tinha realmente acontecido ou se tinha sido fruto da minha cabeça louca de poeta desesperada por uma aventura, sequiosa de paixão, procurando uma musa para as minhas palavras despejadas insanamente no papel, e eu finalmente ia descobrir. Fui direto para o banquinho sentando-me discretamente, com o coração disparado, o corpo fervendo, os olhos sem saber se olhavam pra dentro de mim, para as bebidas nas prateleiras ou para a mulher sentada ao meu lado direito, três banquinhos depois.

O pianista emenda “Samba De Uma Nota Só”. Olho para a morena. É a linda bailarina sim! Não pode ser verdade, mas é ela. O seu semblante está em paz. Não denota a enorme e triste solidão da noite de junho. Está quieta com seus pensamentos, tomando o Black Label daquele jeito prazeroso e particular. Nunca vi uma mulher beber assim. Também nunca vira uma mulher como ela. Uma obra prima de Deus. Que artesão ele foi, com que esmero esculpiu essa filha. Ela não deve ter quarenta anos porque parece muito menos. Sei que tem mais de trinta por suas atitudes seguras, pela maneira de andar desfilando que provoca homens e mulheres. Sabe que deslumbra a todos e domina isso magistralmente. É o tipo mais perigoso de mulher. Intimida qualquer um. Não a mim. Adoro mulher assim. Amo conquistar e ser conquistado por uma mulher dessa estirpe. O mais interessante é que normalmente me ignoram, mas consigo por vezes dar-me bem. Não tenho a menor idéia da razão disso acontecer, mas “tenho estradas nas linhas das mãos”. Imagino as minhas mãos quentes e lisas pegando forte o corpo da bailarina. Eu devoraria inteirinha até a alma dessa mulher. E me deixaria devorar com todos os meus sentimentos, pensamentos, desejos, medos, angústias. E depois daquela cena em que ela me beijou e ainda não sei se aconteceu, preciso descobrir se a bailarina está ali mesmo. Já não tenho certeza nem se eu estou.

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