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sexta-feira, 26 de junho de 2020

O LIVRO DOS CONTOS

O FILME QUE           PASSOU NA MINHA CABEÇA
                          NÃO


SUMÁRIO

1     MESSIAS - ACONTECEU NA QUARENTENA
2     AMANHECER
3     OITO DIAS - CONTO DE CONFINAMENTO
4     A BAILARINA, O BARMAN E O PIANISTA
5    O HOMEM QUE IA MORRER DEPOIS DE AMANHÃ
6    O MENDIGO
7    OS PÉS DE MARIA
8    O NEGÃO
8    TADEU E MARIETA
10   MALDOSO
11   ANTIDENTISTA
12   A CASA!
13   FOTOGRAMAS

MESSIAS – Aconteceu na Quarentena


O mundo despertou subitamente, em meio a uma pandemia que lhe apresentou um novo vírus, excessivamente rápido, agressivo, letal e contra o qual não existia defesas. Nação por nação foi sucumbindo à doença, que dizimou populações, causando pânico, desespero e tristeza. Esse vírus, denominado COVID-19, alterou todo o sistema de vida, os hábitos, costumes e relacionamentos humanos. Todos tinham que manter a distância obrigatória de dois metros um do outro. Apertos de mãos, beijos e abraços foram proibidos, sob o risco de transmissão da virose que se espalhava em progressão exponencial. As pessoas, ao menos as que tinham condições, entraram em quarentena e se isolaram nos lares, preocupadas com o futuro e assustadas com o presente, pois sem trabalho o primordial era sobreviver em meio ao caos econômico, à sobrecarga do sistema de saúde, ao comprometimento dos serviços essenciais, aos efeitos emocionais e psicológicos ocasionados pela situação e ao possível desabastecimento de alimentos. A convulsão social tornou-se um perigo iminente, que poderia causar lutas fratricidas por um pedaço de pão ou uma gota de água
.
Imediatamente renomados cientistas do planeta passaram a lutar contra o tempo, para desenvolverem uma vacina que combatesse a moléstia ou medicamentos que pelo menos retardassem a sua proliferação, até que a cura fosse descoberta. Os governantes mundiais de todos os matizes políticos empreenderam enormes esforços para a proteção e cuidado dos seus povos. Filantropos doaram vultosas somas para compras de insumos médicos. Empresas Multinacionais adaptaram linhas de produção para fabricarem máscaras, luvas, respiradores e outros equipamentos fundamentais nessa batalha. ONGs se dedicaram a ajudar os pobres e carentes moradores de ruas e favelas. Entidades e grupos diversos se desdobraram no tratamento dos contaminados, a exemplo dos Médicos de Cuba, que passaram a atender países do primeiro mundo, com os seus profissionais de saúde se dividindo por várias regiões.

Mas havia uma exceção a essa intensa mobilização da sociedade internacional, sensibilizada com a comoção provocada por tantas mortes de pessoas de idiomas, idades, credos, raças e gêneros variados, que nem funerais tiveram, com seus corpos sendo enterrados sem a despedida emocionada dos seus entes queridos. Em um país de dimensões continentais localizado na América do Sul, desgovernava um sádico e despreparado ditador que minimizava, através de discursos e propagandas enganosas, os riscos do Coronavírus para a sua população. Em rede nacional de TV o insano chamou o vírus de gripinha, fez piadas e xingou de fracotes e vagabundos os que o contrariavam. Ele mandou todos irem trabalhar e crianças voltarem para a escola. Pediu ao povo que levasse uma vida normal saindo de casa para salvar a economia, mesmo que isso causasse as mortes de alguns pobres, velhos e fracos. A mídia internacional repercutiu e condenou a atitude do déspota, deixando até a ONU pasma e receosa de ocorrer uma tragédia humanitária de proporções gigantescas.

Na verdade, o desequilibrado desgovernante vivia o momento mais feliz da sua vida. Sem que ele fizesse nada além das suas sandices habituais, conseguiria eliminar todos os miseráveis e remediados do país inteiro, que viraria o paraíso dos milionários. Claro que trataria de salvar uma parcela de escravos para servirem, depois de purificados segundo a doutrina olavista de seu obscuro guru, aos senhores donos do dinheiro. Montou em seu palácio um “Gabinete do Ódio”, cuja função era desenvolver ideias para destruir a sociedade. Desse escritório saíram ações mirabolantes e cruéis: aumento de impostos; empresas sem pagarem salários; fake news; perseguição aos opositores; decretos estapafúrdios; bilhões de reais para bancos; provocação de discórdias; manifestações nas ruas para apoio às idiotices criminosas inventadas pelo presidente; fomento das paralisações de serviços essenciais; abertura das fronteiras aéreas, marítimas e terrestres para países com a população contaminada; filmagem do tirano andando pelas ruas e cumprimentando o povo incauto e ignorante; convocação para o povo faminto jejuar... Todo final de dia o grupo macabro, integrado por esses seres aberrantes e membros da bizarra equipe ministerial, promovia uma happy hour para conferir quantos mais tinham ido a óbito, constatar o terror da sociedade com a evolução da pandemia e definir as próximas maldades. As gargalhadas demoníacas eram ouvidas a quilômetros.

Entretanto, numa das andanças do inconsciente pela cidade, ele acabou pegando o tal Coronavírus e passou pra toda a sua equipe próxima, além de centenas de pessoas que ele cumprimentara nas ruas. O que ninguém entendia é por que o incompetente, mesmo idoso e com a saúde debilitada por várias operações, era assintomático e continuava vivendo como se não fora atacado pela doença. Mas após analisar vários exames que o parvo realizara, um célebre biólogo descobriu o motivo: o sangue do sátrapa continha o antídoto ao vírus. Ironia das ironias, o grande verdugo poderia salvar a humanidade inteira. O cientista entrou em pânico e quase enfartou. Era um proeminente e respeitado pesquisador e fora um dos intelectuais fundadores do PPT, maior partido socialista do país. Pensava ele que a revelação do feito anularia o seu ótimo conceito junto à comunidade progressista. O antigo sábio se sentiu como os físicos que viram suas invenções se transformarem em bombas atômicas. Angustiado, gravou um vídeo detalhando a fórmula e orientando a concepção da vacina e enviou aos assistentes pelo Whatsapp. Em seguida preparou um coquetel de pentobarbital com outras drogas, bebeu e morreu. O reacionário havia feito a sua mais destacada vítima.

O fato desestabilizou totalmente os assistentes do consagrado biólogo suicida. Uns viram a oportunidade da fama e um Nobel de medicina que os inscreveriam na história. Outros imaginaram o lucro de bilhões de dólares que um leilão junto às indústrias farmacêuticas poderia amealhar. Um grupo de idealistas radicais achava que assumir o sangue do autoritário como a cura seria o fim dos tempos e recomendava esperar. Depois eles explicariam os exaustivos testes que haviam sido necessários para a obtenção do resultado final. Por fim, tinha uma turma de revoltados que queria vender a vacina para terroristas internacionais chantagearem os países capitalistas do mundo. Todos eles se engalfinharam em argumentos e murros, quase destruindo o laboratório. Enquanto isso, alheio ao sucedido, o bárbaro do palácio continuava com suas loucuras, disseminando a virose com sua cara de pau e sorriso de bufão, deixando a sociedade e as instituições do país atônitas. Nem a Organização Mundial de Saúde sabia o que fazer, além de recomendar a internação do patético em um hospício. No que sobrou do laboratório do emérito descobridor da vacina, ninguém percebeu que o faxineiro do lugar também atentara para a chance de fazer uma grana, mas muito mais modesto ligou para poderosa emissora de TV e vendeu a notícia por um salário mínimo mensal até o fim da vida. Aí o veículo de mídia contatou os pesquisadores, negociou exclusividade e na coletiva de imprensa mais concorrida da história, os líderes das facções dos cientistas anunciaram, em duas partes, que a vacina contra o coronavírus fora criada, aliviando unanimemente os habitantes do planeta. Mas a segunda parte da informação devastou a Terra tanto quanto o meteoro que abateu a vida na era dos dinossauros: para a produção da vacina precisavam do sangue da besta que oprimia aquele ensolarado país tropical!

Sem pestanejar, o arbitrário personagem produziu um vídeo onde aparecia ao lado da trinca de filhos dizendo em alto e bom som, sem gaguejar, simplesmente o seguinte: - EU QUERO QUE A HUMANIDADE SE FODA! E deu uma banana que viralizou nas redes sociais mais agilmente até do que o próprio coronavírus entre a população mundial. Depois, sempre grosseiro, foi até a porta do palácio e comunicou à imprensa presente que: “O sangue é meu e ninguém tasca”.  “Isso é uma conspiração do Lelo, Mória e Pritzel”. “Esquerdistas são vampiros e o meu sangue não vão beber”. A discussão ganhou o mundo. Trump colocou um jatinho à disposição do salvador e dos pesquisadores. Queria levá-los para morar com ele na Casa Branca. Putin falou que o sangue do carnífice tinha que ser estatizado. Papa Francisco apelou para os sentimentos cristãos do abestalhado desgovernante, mas nenhum sentimento ele possuía. A Suprema Corte da nação recebeu uma infinidade de ações que pediam desde a prisão do facínora até a sua hospitalização para doação compulsória e completa do seu plasma. A ala de evangélicos que idolatrava o seu líder cegamente passou a chamá-lo de MESSIAS BOLSO, juntando um nome bíblico com o do local onde colocavam a grana dos fiéis.

Com terroristas planejando o seqüestro de Messias, exércitos oficiais e de mercenários buscando capturá-lo e bilionários oferecendo grandes recompensas por litros do seu sangue, as milícias defensoras, os crentes, apoiadores e até a tríade de filhos abandonaram o Bolso à própria sorte. Ele chorou copiosamente igual bebê cagado. Mas antes que algo lhe acontecesse, com tanta agonia imperando foi inevitável surgir uma conflagração mundial. Ninguém sabe quem começou, mas de repente a Índia estava em guerra com o Paquistão, EUA com a China, Israel com a Palestina, Coréia do Norte com o Japão. Os países da Europa, América do Sul e África brigaram entre si e o Irã com os Árabes. Ninguém se lembrou de invadir a Venezuela, que ficou eternamente aguardando os inimigos, vigiando seu petróleo. Só Cuba permaneceu neutra, colocando Mais Médicos à disposição da humanidade. O conflito se espalhou para todos os cantos do planeta, que foi praticamente arrasado e a vida nele extinta.

Quando as contendas cessaram, não havia sobrado gente nem vírus, animais ou natureza. Só uma certeza pairava no ar: às vezes a cura é muito pior do que a doença!

Fábio Roberto

terça-feira, 9 de junho de 2020

AMANHECER


Eu e meus pensamentos acordamos da insônia por volta das cinco horas, antes que o sol nascesse outro dia enfadonho e claustrofóbico. As nossas ideias não mais combinavam e isso nos enlouquecera. Só um objetivo nos unia: deixar o confinamento a que estávamos submetidos há três longos anos, no interior da minha cabeça. Mas, finalmente a pandemia havia acabado. Nada nos impediria de abrir a porta e sair correndo, cada um pra um lado. Eu pra uma vida de aventuras e liberdade, inclusive a de não pensar, só existir, sem máscaras ou preocupações. Os meus pensamentos que escolhessem os seus destinos, que poderiam ser o de atormentar uma cabeça que não seria a minha, já vazia. Talvez até seguirem soltos, a esmo, à toa, como eu renascendo neste mundo miserável, triste e também vazio.


quinta-feira, 2 de abril de 2020

OITO DIAS - CONTO DE CONFINAMENTO


Acordei sobressaltado. A minha respiração era ofegante e o coração estava disparado. Aspirei profundamente todo o ar que eu pude, tentando equilibrar a pulsação e consegui me acalmar. Eu me encontrava numa espécie de colchão de molas, deitado de costas. Percebi e acompanhei o lento girar do ventilador do teto por alguns minutos, até que desci o foco pelas paredes brancas do recinto, num enquadramento de lente fotográfica que alternava o zoom pra perto ou pra longe, como se eu esfregasse os olhos e as imagens se desembaralhassem paulatinamente. Ao meu lado direito havia um guarda roupa de portas escancaradas, deixando nítido o seu interior totalmente vazio que exalava odor de bolor. Do lado esquerdo uma janela fechada colaborava para tornar o ambiente escuro, um breu pesado e silencioso. Tentei me movimentar, mas o meu corpo não respondeu instantaneamente a ordem enviada pelo cérebro. Só após grande esforço consegui levantar a mão direita para tocar o rosto e me apavorei. Eu não tinha mãos, os meus braços mais pareciam ganchos e se mostravam peludos e cascudos como os de um inseto. Não contava exatamente com um corpo e sim com uma espécie de exoesqueleto revestido de uma crosta endurecida. Não era possível, provavelmente eu estava em meio a um pesadelo onde eu seria o personagem de um livro de Kafka. Senti um forte calor. Eu não suava, mas sentia jorrar de mim uma gosma nauseabunda. Antes de passar do pavor para o pânico, ouvi o ranger de uma porta que se abria. Subitamente um humano puxou de forma violenta o lençol do catre onde eu estirara a minha tanta podridão, provocando o espatifar da minha carcaça ao chão. Deu tempo apenas de perceber uma bota suja e cruel vindo em minha direção de forma decidida. Eu me senti ser esmagado com força descomunal, impiedosamente e fui me transformando numa pasta disforme e grudenta, até que tudo escureceu.

Acordei sobressaltado. A minha mente se mostrava entorpecida e confusa, o meu corpo parecia paralisado. Eu não tinha movimentos além da cabeça e dos olhos esbugalhados que piscavam freneticamente, em absoluto e involuntário descontrole. Quis gritar, mas como uma mordaça cobria a minha boca, eu só grunhi tal qual um porco sendo abatido sem dó. Que situação terrível ter o cérebro em pleno funcionamento e o corpo não responder as ordens. Entrei em desespero. Estaria eu tetraplégico por conta de algum acidente, que ainda por cima teria afetado a minha memória? Algumas lágrimas frias e ardidas brotaram em meus olhos. Sem saber o que acontecia ou a minha localização, resolvi estudar a situação. Afinal, as únicas coisas com as quais eu podia contar naquele instante eram o raciocínio, a capacidade de observação e a vontade de reagir. E foi assim que eu me descobri em cima de uma maca, vestido em uma camisa de força, com as pernas amarradas e os pés algemados nas grades laterais. Não fazia sentido, mas pelo menos eu já conseguira avançar no possível entendimento do que estava se sucedendo. Mas o que eu fazia ali, preso daquela forma como se fosse um louco, um Hannibal Lecter sanguinário de periculosidade letal? Subitamente dois homens de aventais brancos entraram na sala com semblantes inexpressivos. Um ligou uma parafernália esquisita, apertou teclas e girou botões, enquanto o segundo colocava placas em minha cabeça e as prendia nela. Aí o primeiro deu o sinal para o segundo e de repente, sem anestesia ou qualquer aviso, comecei a tomar choques elétricos violentíssimos que me estremeceram inteiro, fazendo os meus cabelos eriçarem e os meus olhos vidrarem. Agora sim fiquei com a face igual a de um doido de pedra. Os homens repetiram várias vezes a sessão de choques, então eu nem os reconhecia mais. Na verdade eu já me acostumara e quase os apreciava, quando a minha mente foi se apagando, se apagando, até que tudo escureceu.

Acordei sobressaltado. Eu me senti estranho, mas estava bem aquecido e parecia protegido, ligado a um cordão umbilical que me alimentava constantemente, apesar de que a dona daquele invólucro mantinha uma dieta de comidas gordurosas ou cruas, repletas de bactérias e toxinas, e bebia muito mais álcool do que água. Isso fora as drogas que ela consumia avidamente e que penetravam o seu corpo de todas as formas, chegando-me instantaneamente para comprometer todo o meu desenvolvimento. Quando dei por mim eu era um feto de alguns meses, no interior de uma crápula que me levara a uma clínica de abortos. Dizem que um feto não sente dor, mas falam isso porque não se lembram. Além da terrível sensação física de desconforto causado pelos gases pútridos que habitavam aquela barriga, eu era afetado pelos venenos que circulavam no fluxo sangüíneo da pessoa que jamais eu chamaria de mãe. Tinha hora que me dava uma fissura tamanha, que eu saia lambendo placenta e parede uterina ansiosamente, numa tentativa infrutífera e insaciável de buscar sabores mais agradáveis, mas era tudo amargo e ácido. O mau cheiro daquele espaço apertado se fazia repulsivo. A situação me acometia de uma angústia atroz, porque eu conseguia ouvir vozes conversando lá fora e também o som estridente de instrumentos cortantes sendo preparados para o dilaceramento do meu pequenino corpo e o desligamento total da minha alma. Eu nem tinha tido tempo de saber se viveria depois para sempre em algum paraíso, ou viajaria para a eternidade de um inferno pior do que aquele que eu conhecera neste pouco tempo de existência. O filosofar foi interrompido bruscamente pelo início do procedimento do meu assassinato e uma contagem decrescente de dez para zero. Lá pelo número sete o meu cérebro em formação começou a desfalecer e se alegrou, porque pelo menos a anestesia não me permitiria sofrer e assim eu fechei os meus olhos e nem chorei, até que tudo escureceu.

Acordei sobressaltado. Eu senti muito medo, uma paura daquelas de dar diarréia e mijaneira simultâneas, tremedeira e suor exacerbado. Eu jazia em uma poça de sangue no chão sujo e gelado de um cubículo sem luz, mas estava vivo, apesar de respirar com imensa dificuldade. Tinha costelas quebradas, dentes partidos, hematomas por todo o corpo e os pulmões comprometidos. Abri levemente os olhos intumescidos e roxos para divisar que eu estava encarcerado num porão úmido, de paredes enegrecidas, bolorentas e caindo aos pedaços. Como eu havia parado ali eu não lembrava, só sabia que eu havia sido espancado por muita gente ruim, que gargalhava a cada gemido de dor que eu dava. Eu implorava para que parassem o suplício, mas o ódio e a agressividade deles só aumentavam. Levei chutes na cara, pauladas, socos fortíssimos. Fui colocado nu e puxado pelos cabelos como um boneco de pano. Então eles me penduraram por uma corrente que vinha desde o teto e fiquei abandonado assim, até que a corrente se partiu e eu me esborrachei no cimento esvaindo-me no plasma que era lambido por ratos enormes, que também mordiscavam as minhas pernas. Era só isso que a minha memória alcançava. Não sei por quanto tempo fiquei assim, talvez um dia ou três, até que os canalhas voltaram e me ergueram gargalhando novamente, dando tapas em meu rosto e me jogando água fria para que eu permanecesse acordado e lúcido. Levaram-me arrastado, algemado e com os pés amarrados para fora da cela. Eu fui me batendo nas paredes do corredor apertado e nos degraus de uma escadaria que nunca acabava, até que uma porta metálica se abriu e a luz do sol praticamente cegou os meus olhos. Quando consegui enxergar algo novamente eu estava de costas para um muro, em frente a um pelotão de fuzilamento. Todo aquele temor que eu sentia de repente passou e eu sorri, olhando para o céu em agradecimento. Eu só queria as balas perfurando o meu corpo, deixando-o como uma grande peneira de garimpeiro. Eu não consegui segurar a gargalhada. Desta vez era eu quem a dava, o que irritou sobremaneira os meus algozes. Um deles gritou “fogo” para os outros, que engatilharam os seus fuzis e atiraram. A saraivada de projéteis atingiu meu corpo como gotas de água abençoada. Eu continuei gargalhando histericamente, enquanto a maldade se descortinava vagarosamente defronte aos meus olhos, até que tudo escureceu.     

Acordei sobressaltado. Mãos rudes e grosseiras de quatro homens me seguravam e exploravam todo o meu corpo. Um gigantesco e pesado ser estava sobre mim, enlaçando o meu pescoço e fazendo um movimento tão rápido e violento por detrás que me rasgava inteiro. Descobri que estava sendo estuprado por pessoas alucinadas e anormais. A dor era lancinante. O cara que me violentava tinha um tamanho desproporcional em todos os sentidos. Pelos grosseiros cobriam-no integralmente, o que fazia que se assemelhasse a um primata, não só pela atitude, mas também pela aparência. Eu me sentia sangrar e arder e o sofrimento só aumentava. Se eu tentasse reagir, o que era praticamente impossível, a coisa ficava pior. O animalesco que me penetrava suava em bicas e exalando o seu bafo fétido me lambia a nuca, me chamando de puta, vagabunda, safada, afirmando que eu seria a “mulherzinha dele para sempre”. Eu já estava rogando que o descerebrado chegasse logo ao ápice e despejasse no meu interior todas as suas doenças, porque os outros que me seguravam tentavam me excitar manipulando o meu membro, como se fosse viável ter qualquer sentimento ali que não fosse aflição, desespero e nojo. Não obtendo sucesso, passaram em minha face e lábios os enormes pênis enrijecidos e molhados de esperma e enfiaram-nos em minha boca até a garganta, rasgando os cantos que sangraram tanto quanto o ânus alargado pela broca colossal do ogro. Aí o monstrengo tremelicou, relinchou feito um cavalo e soltou uma cascata de gozo que transbordou ao chão. Era incrível, mas intimamente eu me senti aliviado, porque quem sabe assim saciado aquela tortura acabasse. A esperança foi logo desmentida, porque um dos que haviam enfiado os paus na minha boca, trocou de lugar com a besta e tudo recomeçou. E assim foi por um tempo incalculável, com os aberrantes se revezando dentro e fora de mim, naquela sanha cruel, mórbida e sádica. Felizmente, até talvez por um ato de auto defesa final, o meu corpo repentinamente se entregou e deixei de ter qualquer sensibilidade. Não importava mais a minha extinta masculinidade profanada. A minha mente começou a agonizar gradativamente, me livrando dos futuros traumas, moléstias e vergonhas, até que tudo escureceu. 

Acordei sobressaltado. Olhei pros lados e pra cima e fiquei horrorizado porque eu havia dormitado dentro de um caixão de defunto. Quase sufocando eu vi por frestas na madeira decrépita e apodrecida, que o esquife se depositava em uma vala, cercado de lama e pedras. Mesmo contido naquele espaço comprimido, eu gritei exasperado como nunca gritara antes, batendo na tampa deteriorada que me lacrava. O silêncio ensurdecia e o escuro assustava. Ainda existia ar naquele compartimento exíguo. Consegui distinguir que o meu melhor terno, um Armani falsificado, me vestia e que em meus pés haviam calçado sapatos nobres, pretos e lustrosos. Não tinha a companhia de flores. Pelo menos quem cuidara do meu sepultamento respeitara os meus sentimentos pregressos. Alérgico a perfumes de rosas ou outras plantas, quando em vida eu espirrava sem parar na presença delas e eu não sabia antes o que aconteceria quando morresse, fato que eu descobriria ironicamente agora, ali no fundo daquela cova imunda e desrespeitosa do meu sepulcro. Mas será que ninguém percebera o equívoco? Qual o médico desgraçado que houvera assinado o meu atestado de óbito? Ninguém auscultara devidamente o meu coração, verificado o meu pulso e as atividades intensas do meu cérebro? Nem pressa havia para provocar o meu desenlace, uma vez que sendo paupérrimo nada além de dívidas eu deixaria como herança. Soltei a voz poderosamente outra vez, apesar do ar estar ficando mais rarefeito, para que me descobrissem vivo e me tirassem imediatamente dali. Que me chamassem de Lázaro, o ressuscitado, ou me considerassem um Zumbi da série The Walking Dead, mas que me salvassem. Isso não ocorreu e eu ouvi as rezas e bênçãos de um padre, verdadeiro absurdo para um ateu, o que aumentou a minha angústia, mas se precisasse implorar a Deus ou fazer promessas pro Demo pra me safar do fenecimento que estavam provocando eu concordaria. Entretanto, ninguém me ouvia na Terra, no Céu ou no Inferno. Falando em terra as orações cessaram e o barro começou a ser derrubado sobre o ataúde, tumulando todas as minhas esperanças. Uma lágrima sentida caiu do meu olho direito, enquanto a respiração foi diminuindo, diminuindo, até que tudo escureceu.

Acordei sobressaltado. Porém, logo reconheci o meu quarto com suíte, a cama King Size dotada de colchão d’água onde eu estendia a minha coluna de atleta, os travesseiros de penas de gansos onde a minha criativa cabeça descansava e o edredom volumoso e perfumado que tinha o privilégio de me aquecer todas as noites. Então eu me acalmei, já pensando em levantar. Eu sempre despertava no pique total, alegre, saltitante, com vontade de comer, produzir, transar, trabalhar, me divertir, sair e explorar o mundo, levando a todas as pessoas amigas ou desconhecidas a minha incomparável e contagiante energia. Devido ao silêncio na casa e fora dela imaginei que era muito cedo, mas já passava das nove horas de um sábado. Desci as escadas e liguei a TV da sala, mas descobri que não havia eletricidade. Então fui direto à cozinha preparar o breakfast. Eu estava com vontade de um café da manhã do estilo que a gente vê em filmes americanos. Peguei três ovos, várias fatias de bacon e fritei tudo naquele tipo de frigideira em que nada gruda. Em outra panela rasa eu preparei panquecas, quando subitamente acabou o gás. Que dia esquisito começava, mas nada abalaria a minha fome. Para acompanhar o lanche eu cortei e bati manualmente frutas, leite e cereais diversos. Sentei para forrar o estômago, peguei o celular e estranhei. Não havia sinal. Por isso ninguém havia me chamado no whatsapp ou enviado um email. Apelei para o lap top que contava com a bateria carregada, tentando uma rápida navegação pela internet, só que apareceu uma mensagem dizendo que não havia conexão. Voltei ao quarto contrariado, preparado para o saudável banho matinal, esquecido que sem luz a ducha estaria bem gelada, mas isso não seria o problema. Chato foi bem na hora em que eu estava todo ensaboado a água parar de jorrar. Não podia ser verdade, parecia gozação. Será que eu não pagara as contas todas? Que nada, eu era milionário e os pagamentos ficavam em débito automático... Tirei o sabão e me enxuguei com a toalha, coloquei o abrigo esportivo e fui às ruas correr, para a devida manutenção do meu invejado e musculoso corpo. Eu tinha orgulho de exibi-lo nas academias e baladas. Em um quilômetro já percebi que carros não transitavam e nenhuma pessoa circulava. Realmente era um dia singular. O bairro parecia abandonado, todo o comércio estava com as portas cerradas. Fui trotando pelo meio do vazio da rua e passei por um desses relógios urbanos. A mensagem me chamou a atenção porque dizia: “NÃO SAIA DE CASA. CUIDADO COM O CORONAVÍRUS!” E um textinho curto alertava para uma pandemia que havia acometido o mundo inteiro. Mais adiante, um cartaz afixado num muro explicava mais detalhadamente que a tal doença havia dizimado populações. Mas tudo isso enquanto eu dormia? Como eu não havia percebido nada? Eu teria ficado cego e surdo por um período? Então as pessoas deviam estar trancadas em seus lares, obedientes e preocupadas, esperando a tal virose passar. Corri aceleradamente de volta pra casa pra falar com os vizinhos. Toquei as campainhas de cinco ou seis residências, mas não havia ninguém. O pânico bateu de vez. Só existia eu num mundo sem gente, água, eletricidade, gás, internet ou qualquer forma de comunicação. Mas a essa altura tanto fazia a comunicação, se não existia ninguém pra interagir ou pra quem me exibir. Mesmo rico, fatalmente os meus mantimentos acabariam em breve, pois eu não era de fazer grandes compras e estoques. Relaxei, entrei em casa, peguei a última caixa de Heinekens, cujas latinhas nem geladas estavam, coloquei uma cadeira na calçada e fiquei tocando violão, bebendo e olhando para o nada. Vez em quando eu parava e pensava que poderia ter acontecido outras coisas péssimas ao invés disso, como por exemplo, acordar sendo o Gregor Samsa ou internado como um louco tomando fortíssimos choques elétricos. Já imaginou despertar e se descobrir um feto prestes a ser abortado ou frente a um pelotão de fuzilamento? Talvez fosse pior ainda, ao amanhecer, se perceber sendo enterrado vivo ou estuprado incessantemente por vários mastodontes. O mundo era repleto de possibilidades horríveis e a situação que esse tal de corona tinha provocado talvez houvesse superado tudo, pois me faria morrer solitário e à míngua, num padecimento demorado, sinistro e lúgubre, com toda a minha grana que não serviria pra nada, o corpo musculoso que definharia até o esqueleto, o orgulho que se transformaria na humildade dos miseráveis e a alegria por viver que nunca mais encontraria um sorriso para se expressar. No início da madrugada, cansado, triste e abatido eu me deitei. Pensei em orar, mas como não sabia, apenas mantive no coração enfraquecido um leve sentimento de esperança de que amanhã seria melhor. Aos poucos fui adormecendo e me desligando da consciência, até que tudo escureceu.

No dia seguinte acordei sobressaltado...

FIM

sábado, 14 de dezembro de 2019

O LIVRO DOS CONTOS

O FILME QUE           PASSOU NA MINHA CABEÇA
                          NÃO


SUMÁRIO
1    A BAILARINA, O BARMAN E O PIANISTA
2    O HOMEM QUE IA MORRER DEPOIS DE AMANHÃ
3    O MENDIGO
4    OS PÉS DE MARIA
5    O NEGÃO
6    TADEU E MARIETA
7    MALDOSO
8    ANTIDENTISTA
9    A CASA!
10  FOTOGRAMAS

A BAILARINA, O BARMAN E O PIANISTA

Balcão de um bar desconhecido, excelente para apoiar cotovelos, copos e pensamentos. Bebo tranquilamente a minha tensão. O barman não me conhece, mas já sabe que não sou conversa. Ele é mais velho do que este antigo balcão. Como naquela antiga lenda, acho que o bar foi construído e certamente ele já morava ali, era careca, corcunda, enrugado e com as mãos calejadas porque já trabalhara na roça mais cedo ainda do que jovem. Mas que rosto simpático e confiável esse senhor carcomido pelo tempo apresenta. Tem um sorriso daqueles que não se abre pra qualquer piada, mas somente para uma situação de valor. Uma gargalhada, então, só por causos realmente inusitados. Ao longo desta noite foram oito sorrisos e uma só gargalhada até agora. Apesar disso ele não tem um ar sisudo e na verdade revela um raro bom humor.

No fundo do bar, ao lado esquerdo do balcão, o pianista toca jazz, bossa e ritmos latinos. Ele aparenta ser argentino ou uruguaio ou cubano, sei lá. Normalmente gente desses povos e eu não nos sintonizamos em ambientes musicais, não sei bem por que ou sei bem por que. Meus ouvidos o escutaram cochichar ao garçom que me conhece, mas eu não me lembro de tê-lo esquecido. Sendo respeitado como músico, ele me olha de soslaio agradecido considerando-me como um cliente diferenciado, pois cada vez que eu gosto de uma música estalo discretamente os dedos ao invés de bater ruidosas palmas. Aí ele faz uma mesura ridícula e desnecessária com a cabeça. Talvez porque só eu, entre os clientes do bar, esteja apreciando o som.  Na verdade eu e aquela linda morena sentada a três banquinhos do meu.

Ela também ouve a música imersa em total silêncio. Uma noite de nenhum trabalho para o barman, que não tem que escutar as mesmas ladainhas bêbadas de sempre. Essa mulher está triste, impressionantemente triste e a cada gole que dá no whisky a sua melancolia parece mais aquecer. Ela me fitou algumas vezes, apesar de que é uma mulher interessante demais para me notar. Os seus gestos são muito delicados, tem uma graça toda especial. Alta madrugada, quando se levantou para ir ao toalete, passou bem perto de mim mostrando um corpo deslumbrante. Tem uma tatuagem indefinível no final das costas. Eu a vi porque a blusa dela deu uma levantadinha e assim ficou até ser ajeitada no meio do caminho. Se eu fosse arriscar diria que ela é ou foi uma bailarina. O desfilar dessa mulher pelo bar foi seguido na ida e na volta por faces sequiosas dos cavalheiros exalando desejo e por faces raivosas das damas exalando inveja. Ela nem aí com nada disso, sentou-se de novo em seu lugar.

O barman está no centro do balcão, bem entre nós. A moça dá um profundo gole em seu Black Label, de olhos fechados. Fica assim alguns segundos curtindo a bebida percorrer as suas veias. Eu percebo que lábios deliciosos ela tem e tento adivinhar o que se passa na alma daquela mulher tão bonita e angustiada. Dá uma vontade de escrever... Tanta que eu quero que minha hibernação criativa se dane. Pego um guardanapo e peço uma caneta ao garçom. Rabisco uns versos com a minha letra ininteligível. Olho para a bailarina - para mim ela é bailarina - e ela está me olhando também. Fico desconcertado e disfarço pedindo outra cerva, mirando as garrafas nas prateleiras como se elas tivessem sido colocadas ali naquele instante. Dou a peculiar mexida em meus bagunçados cabelos. A morena dá outro gole daqueles, com tanto prazer que até eu me esquento e fico com vontade de Black Label. Ela abre os olhos e me olha, pega o seu copo, levanta o corpo escultural do banquinho e vem na minha direção. Aí me dá uma quentura que eu ligaria o ar condicionado no máximo mesmo com este enorme frio. Não fala nada, sorri e senta-se ao meu lado.

O barman sorri também, pela nona vez, mas este foi riso mais generoso, cúmplice. O pianista até faz uma pausa fora de hora para acompanhar o que está acontecendo. Súbito, de forma simultânea, a bailarina e eu tomamos as nossas bebidas sorvendo cada gota, sentindo o sabor escolhido como companhia da madrugada. Estamos quietos, não conversamos a noite inteira e eu nem me agüentando de calor tiro o casaco, pego outro guardanapo e escrevo “Take Five”. Eu sempre peço “Take Five” aos bons pianistas. O garçom leva o papel ao músico, que deve adorar essa canção porque sorri pela primeira vez de forma sincera, se ajeita todo e manda ver. Foi ótimo. A bailarina, o barman e eu acompanhamos o latino percutir o teclado, o que ele faz com a técnica e o swing necessários. Acaba a música e eu começo a elogiar a interpretação estalando os dedos. A bailarina dá uma risada maravilhosa e cheia de charme começa a estalar os dedos também, assim como o barman, que repete o nosso gesto com uma sonora gargalhada, a segunda da noite. A mesura com a cabeça feita pelo pianista foi bem natural desta vez.

A partir daí a cada canção encerrada, a linda bailarina, o velho barman e eu estalamos os dedos gargalhando como crianças sem trocarmos palavras. A bailarina esqueceu mágoa. O barman fez-se feliz. O pianista sentiu-se recompensado. E eu pasmo fiquei até nos descobrirmos sozinhos com o garçom arrumando as cadeiras, pois já era hora do bar fechar. Pedimos as contas, eu pago em dinheiro e a bailarina com cartão de crédito. Tem neste momento o semblante de uma deusa. Uma expressão revigorada, forte, alegre. Agora sim seu rosto é totalmente esplendor. Levanta-se, dá-me um abraço e um beijo tão intenso que eu bebo nessa hora umas cinco doses de Black Label através da língua da linda bailarina morena. Olhando dentro de mim ela fala obrigada anjo e parte. O barman pega outra garrafa de Black Label, serve três copos, coloca a garrafa no balcão, chama o pianista, sentam-se cada um de um lado e ficamos os três emudecidos, com os cotovelos apoiados no balcão, pensativos, mergulhados em nossas solidões e mirando as garrafas nas prateleiras como se elas tivessem sido colocadas ali naquele instante.

A BAILARINA, O BARMAN E O PIANISTA - Parte 2

Eu não queria voltar ali. Eu tinha a certeza de que não ia ser igual. Eu acreditava que nunca um raio cai no mesmo lugar duas vezes. Mas eu, sozinho noutra madrugada fria, saí desprovido de sentimento, de expectativa e de esperança. O carro me guia pela Avenida 23 de Maio muito rapidamente. Eu gosto de acelerar a vida, mas não tenho mais coragem de arriscar tanto. Não pelo medo da dor. Não pelo medo de morrer. Apenas medo de algo muito superior à dor e à morte. Vou assim até quando acho que o automóvel parece se desintegrar. Assim como os meus sentimentos confusos, arremedos de células que pensam tentando se juntar, para formar novamente o desenho de uma alma que habitará um corpo, que terá um coração pulsando e um cérebro independentemente rebelde, que terá vida própria para fazer o meu pobre Fiat Palio ir até o endereço daquele bar. O bar onde eu conheci o excelente e estranho pianista latino, o velho barman simpático carcomido pelo tempo e ela, a bailarina. Ela, de quem eu certa noite consegui suprimir a mágoa, a solidão e a tristeza sem trocar uma palavra. E que por isso recebi o beijo mais repleto de amor sincero que eu já tive oportunidade de ter. Será que a verei esta noite?

O carro se estaciona bem à frente do bar. Fico dentro dele lembrando cada detalhe ocorrido naquela madrugada mágica e rara de junho. A bailarina solitária e melancólica, sua beleza e corpo estonteantes, o charme de suas mãos pegando a bebida com delicadeza, a boca carnuda tocando o copo sensualmente com enorme desejo. Ela bebia aquele wisky com volúpia, certamente para acalentar a sua alma que se distanciava e ia visitar os gélidos recônditos da tristeza em que estava mergulhada.

Aqui de fora não dá para ouvir se o estranho pianista latino toca seu jazz. Espero que sim, porque no mínimo eu e minhas dúvidas passaremos momentos acompanhados por uma ótima música e pelo velho e simpático barman. Um profissional com a experiência de anos lidando com gente de todos os tipos nas mais variadas situações: embriagados, educados, grosseiros, atenciosos, paqueradores, silenciosos, espalhafatosos, ricos, miseráveis, tarados, idiotas, geniais...

Hesito muito em sair do automóvel. Chego a ligar o motor para ir embora e ficar com a anterior imagem surpreendente e inacreditável que ainda permanece na minha cabeça. A sensação do beijo delicioso que ficou na minha boca até hoje. O beijo da bailarina renascida em alegria ao se despedir de mim naquela noite. Rememoro os olhares assustados do barman e do pianista quando ela me abraçou forte. Não queria correr o risco de entrar no bar e não acontecer nada desta vez. Mas, teimosa e desafiadoramente, entrei.

Os meus olhos passeiam pelo bar e só então reparo quão agradável é a penumbra do seu ambiente aconchegante. O som do piano chega aos meus ouvidos ao mesmo tempo em que eu vejo uma mulher sentada no mesmo banquinho da bailarina naquela noite inesquecível. Será que é ela? Só pode ser ela com aqueles longos cabelos soltos, a postura impecavelmente ereta e nobre. Mas não é possível. Seria muita coincidência ela ter voltado ao bar no mesmo dia que eu. Ando três passos no ritmo de “Chovendo na Roseira”. Assim que o pianista me vê faz aquela esquisita mesura com a cabeça, bastante veemente e engraçada desta vez. O músico realmente ficou feliz quando me viu. Sabe que chegou alguém para prestar atenção ao seu concerto, reverenciando-o com o famoso estalar de dedos. O velho barman está ocupado preparando alguns drinks coloridos, enfeitando-os com rodelas de laranjas e canudinhos. E a mulher eu agora tenho quase certeza de que é a bailarina. É impressionante essa situação, mas só pode ser ela. Mais de duas semanas querendo saber se a bailarina é de verdade, se tudo aquilo tinha realmente acontecido ou se tinha sido fruto da minha cabeça louca de poeta desesperada por uma aventura, sequiosa de paixão, procurando uma musa para as minhas palavras despejadas insanamente no papel, e eu finalmente ia descobrir. Fui direto para o banquinho sentando-me discretamente, com o coração disparado, o corpo fervendo, os olhos sem saber se olhavam pra dentro de mim, para as bebidas nas prateleiras ou para a mulher sentada ao meu lado direito, três banquinhos depois.

O pianista emenda “Samba De Uma Nota Só”. Olho para a morena. É a linda bailarina sim! Não pode ser verdade, mas é ela. O seu semblante está em paz. Não denota a enorme e triste solidão da noite de junho. Está quieta com seus pensamentos, tomando o Black Label daquele jeito prazeroso e particular. Nunca vi uma mulher beber assim. Também nunca vira uma mulher como ela. Uma obra prima de Deus. Que artesão ele foi, com que esmero esculpiu essa filha. Ela não deve ter quarenta anos porque parece muito menos. Sei que tem mais de trinta por suas atitudes seguras, pela maneira de andar desfilando que provoca homens e mulheres. Sabe que deslumbra a todos e domina isso magistralmente. É o tipo mais perigoso de mulher. Intimida qualquer um. Não a mim. Adoro mulher assim. Amo conquistar e ser conquistado por uma mulher dessa estirpe. O mais interessante é que normalmente me ignoram, mas consigo por vezes dar-me bem. Não tenho a menor idéia da razão disso acontecer, mas “tenho estradas nas linhas das mãos”. Imagino as minhas mãos quentes e lisas pegando forte o corpo da bailarina. Eu devoraria inteirinha até a alma dessa mulher. E me deixaria devorar com todos os meus sentimentos, pensamentos, desejos, medos, angústias. E depois daquela cena em que ela me beijou e ainda não sei se aconteceu, preciso descobrir se a bailarina está ali mesmo. Já não tenho certeza nem se eu estou.

A BAILARINA, O BARMAN E O PIANISTA - Parte 3

Vejam só eu sonhando em conquistar a bailarina. Eu falei para a minha cabeça ir com calma! Chega, chega de exagerar nos devaneios. Nem sei se a bailarina existe e a minha cabeça tem a ousadia de sonhar que estou tocando aquele corpo fenomenal. Ai meu Deus, só falta eu começar a sonhar com ela toda nua! Espera aí, ousadia tem limite, preciso controlar a minha mente, sou o dono dela afinal. Vou beber é um Ballantine’s, respirar fundo, contar até um milhão... Eu consigo, não vou ser manipulado pela minha mente. O barman notou-me e veio me cumprimentar muito sorridente, quase pulando o balcão para um abraço. Fico até sem graça. Bem na hora em que toca o celular da bailarina e ela o atende. Distraída, nem percebe a minha presença. O barman já foi providenciando o baldinho com três Bohemias de garrafinhas long neck, pois me esqueci do Balla. Ele serve o primeiro copo e fala que bom que vocês voltaram. Vocês quem? Eu e as minhas angústias? Eu e a busca permanente de saciar a minha fome de vida? Eu e a poesia maldita que sai da minha cabeça mesmo quando estou feliz? Ou eu e a bailarina? Será que ela também nunca mais tinha voltado a este bar? Ela desliga o celular e ao ajeitar os cabelos pretos, escuros como madrugada com luar, quando a bailarina seria o brilho da lua, vislumbro uma aliança que não esteve nunca em seu dedo. A música acaba e eu estalo os meus dedos, estes sem aliança nenhuma.

A bailarina finalmente percebe a minha presença e abre um sorriso que não dá para descrever. Se vocês leitores puderem aguardar vou procurar algo em Quintana, Vinicius ou Drummond para comentar esse sorriso. Eu, com minhas palavras inertes de talento, digo que foi um sorriso igual ao de uma criança perdida na praia e que acaba de encontrar o pai. Quem já se perdeu já deu esse sorriso misto de alívio e felicidade imensa. Ou o rabo-sorriso de um cão quando o dono volta pra casa. O dono está fora somente há poucas horas, mas a alegria do cão é como se o dono estivesse longe há anos. O sorriso de mãe que acaba de parir e tem o seu bebê pela primeira vez nos braços compensando a dor do parto. Ou desse bebê no conforto dos braços que pertencem ao corpo que era sua casa até então e de onde fora despejado. O sorriso de um alcoólatra quando toma o seu primeiro gole do dia. Toma esse gole como se fosse o último. Ou o sorriso de uma virgem que acabou de ser deflorada pelo amor da sua vida. Mesmo que nunca mais veja esse homem, é o amor da vida. O sorriso de um condenado à morte, nervosamente sentado na cadeira elétrica, bem no instante em que ocorre um apagão geral. Um riso de incredulidade total. É assim e não estou exagerando. E o meu riso é tudo isso somado a espanto, pois ela levanta-se, pega o copo, balança os cabelo pretos e o corpo estonteante vindo para mim com seu andar de dança. Fui eu quem falou que esse tipo de mulher não me intimida? Esqueçam o que eu disse!

A bailarina se aproxima e ainda em pé aperta meu braço esquerdo com a mão direita, encostando os lábios carnudos nos meus, enquanto eu seguro o copo meio trêmulo com a mão esquerda e a minha mão direita, mais esperta naquela hora, procura enlaçá-la pelas costas puxando-a para perto. Foi rápido esse beijo, mas não menos saboroso. Principalmente considerando-nos quase desconhecidos, ou quase amigos ou quase sei lá o quê. Nesse momento ficou definida a existência da bailarina, então o beijo da outra noite também tinha sido real. Para não haver mais questionamentos eu pergunto ao velho barman se ele existe e ele com uma expressão preocupada me responde seriamente que tem certeza que sim. O pianista das mesuras começa a tocar “Take Five” e todos têm certeza de que não estamos sonhando. A bailarina senta-se bem encostadinha em mim no banquinho ao lado. Adoro mulher que gruda. Ainda mais aquela obra prima do bom Deus. Fico até com certo ar de convencimento e já não estou tão intimidado assim. De repente, penso, eu posso controlar essa situação. Estou com aquela mulher fantástica colada em mim, acabo de ter certeza da existência dela e ela da minha, quando as mãos da mulher me chamam a atenção e eu que nunca ligo para alianças nos dedos de ninguém, vejo novamente a aliança da bailarina. Ela dá uma gargalhada com uma sonoridade bem marota, tira a aliança do dedo e joga na bolsa de forma displicente. Fico numa excitação tal, que a partir desse momento acho que nunca mais confundirei sonho e realidade.

Está respondida a grande pergunta? Acabou o suspense? A bailarina é de carne (que carne) e osso (que ossos). Tudo começou a acontecer num mês de junho, foi rápido, louco demais e apenas fui ter coragem de falar da bailarina no momento em que iniciei este relato, digitando palavras nervosamente no computador. Parece ter sido fácil, parece uma estória comum de um cara comum encontrando uma mulher incomum que vai com a cara do cara e rola uma grande paixão, só que o cara não era nada comum e ele surgiu para essa mulher quando ela vivia uma situação incomum que por causa dele se tornou tremendamente incomum. A presença do cara deu vida à mulher. A presença da mulher transformou a vida do cara. Poderiam caminhar para um romance com final feliz. Mas estórias com finais felizes são criadas para poucos. Não para dois seres essencialmente fora do comum. Não para pessoas que carregam os sentimentos nas mãos, fazendo deles um presente ou uma arma. A escolha do destino quase sempre é desfavorável aos personagens especiais da vida. Nesse tempo em que eu vivi as emoções aqui narradas, havia fechado o meu coração para novos amores tão violentos. Já perdera a primeira mulher da vida e estava perdendo a segunda, o que havia resultado em centenas de composições e poemas. Foi então que conheci a bailarina, de quem nunca conseguira escrever uma palavra ou pra quem nunca compusera uma nota musical até agora, porque a perdi também. Você está achando que a estória não tem mais interesse, que realmente acabou o suspense e que só resta contar como perdi a terceira mulher da minha vida? Você vai saber que nada é tão simples assim para este narrador, que depois da bailarina jurou mesmo nunca mais se apaixonar.

A BAILARINA, O BARMAN E O PIANISTA - Parte 4

A madrugada iniciou o seu declínio, mas o pianista continua inspiradíssimo tocando com uma sensibilidade ímpar. Interpretando“Moon River”, atinge no âmago os poucos clientes que estão no bar, além do garçom que fica até o último freguês. É muito aplaudido. Coloca ritmo e seu peculiar swing para executar a próxima música, “I’ve Got You Under My Skin”, sendo assistido com muita atenção. O velho barman, sempre solícito, fica com os olhos em revezamento entre os drinks, os clientes, o pianista e principalmente a bailarina e eu que estamos nos entendendo muito bem e namorando deliciosamente. Conversamos e nos beijamos sem parar, mas posso afirmar que a bailarina tem muito mais do que a enorme beleza que me deixa constrangido por uma mulher desse nível estar comigo e com minha ausência estética. Ela tem inteligência privilegiada, um humor irônico e sagaz que combina perfeitamente com o meu. Aliás, eu estou certo de que nós combinamos perfeitamente em tudo e minha mente começa novamente a acelerar pensamentos, embaralhando palavras e confundindo as que deveriam sair da minha boca. Só quero aquela mulher nua em meus braços. Eu sou só desejo e raciocínio não faz mais parte de mim. A bailarina trata de me trazer para a realidade dizendo já estar cansada e que é hora dela ir embora. Como raciocínio não faz parte de mim não reajo. Ela me dá mais um daqueles beijos que me percorre inteiro instantaneamente como cinco doses de Black Label nas veias, escreve o número do celular num guardanapo e fala ligue quando quiser na hora que quiser. Parte.

Faltam poucas horas para raiar o dia. A saída da bailarina deflagra a movimentação do bar rumo ao encerramento das atividades. Todos estão com suas missões cumpridas. O pianista latino fecha o instrumento e vai lanchar. O velho barman inicia a limpeza do balcão, ajeitando copos e garrafas. O garçom leva as contas para os últimos clientes e arruma mesas e cadeiras almejando merecido descanso. Eu tenho a sensação que há um desapontamento no ar porque eu deixei a bailarina ir embora sem nem esforço para ir junto, sem nem esforço para ela permanecer mais um pouco. Fico intimamente irritado com eles. Eles tinham acompanhado a estória desde a primeira noite, viram que eu namorei e conversei com a bailarina o tempo inteiro desta vez e não estavam satisfeitos com a minha performance? Eu estava me julgando um super-herói merecedor de medalhas e troféus e o barman, o pianista e até o garçom menosprezavam a minha atuação? A irritação íntima passa rapidamente para raiva e a raiva para um ódio incontrolável para comigo mesmo. Pego o guardanapo com o telefone da bailarina, lembrando que ela tinha dito para eu ligar quando e na hora em que eu quisesse. Então o quando para mim é agora. A hora, quatro e trinta e cinco da matina. Ela atende e eu falo que estou com saudades. Ela dá uma gargalhada marota e excitante com a voz rouca de whisky. Dá-me um endereço que eu nem anoto e rindo novamente fala para matarmos a saudade.

Não sei como chegar até aquele prédio situado em algum lugar da zona norte, mas o Palio sabe e me leva até lá. Matamos muito mais do que saudade. Quase nos matamos de sexo! A bailarina é uma máquina de prazer e eu, como um bom tarado romântico, não posso decepcionar a ela, a mim, ao Palio, ao pianista latino das mesuras, ao velho barman carcomido pelo tempo, aos clientes do bar, ao garçom que queria descanso, às mulheres da minha vida que eu tinha perdido anteriormente, à poesia, aos poetas, à música, aos compositores, à minha cabeça louca e desvairada, às minhas angústias, dúvidas, alegrias, tristezas e frustrações, aos homens que já tinham desejado sem sucesso aquela mulher fascinante, aos amores eternos, aos amores fugazes, às paixões malucas, a Deus que esculpira tal obra prima, aos meus bagunçados cabelos, a vocês que estão acompanhando esta estória doida e até àqueles que nunca irão ler estas linhas. Confesso que fui bem. Muito bem. Sobrevivi, tanto que estou aqui para comprovar. Não vou descrever detalhes de como é amar a bailarina, nem falar sobre ela nua, o corpo moreno tão perfeito que dá até desespero de olhar, mas afirmo que quando entrei nessa mulher, nada mais importou. Nem respirar, nem sexo, nem amor, nem beber, nem família, nem morte, nem poesia, nem trabalho, nem tempo, nem grana, nem saúde, nem alegria, nem vida. Tudo era pouco comparado a estar dentro da bailarina.

A BAILARINA, O BARMAN E O PIANISTA - Epílogo

Chego à minha casa perto do meio dia graças novamente aos serviços prestimosos e abnegados do Fiat Palio. Parece que esse carro é uma extensão da minha cabeça, também com vontade própria e tal. Ele não pode me ajudar num momento importantíssimo que vou contar logo mais, mas não o recrimino pelo tanto que foi parceiro sempre. Todos ainda dormem porque em casa o horário noturno é extenso e repleto de ação. Tomo um banho lembrando cada momento da longa noite e vou trabalhar direto. Acho que não devo ligar para a bailarina e de noite vou beber com amigos que me dizem que eu estou mais estranho do que de costume. Esquisitos são eles, pois estranho é nada pelo que eu tinha passado. Só privilegiados têm noção do que é a bailarina e a maravilha de compartilhar as carícias mais lascivas com ela. A minha agitação está grande, assim como a dispersão em relação aos papos que para mim não apresentam nenhum atrativo. Vou para casa, toco um pouco de violão e desmaio. Acordo dia seguinte sobressaltado com a campainha da casa soando pouco depois das treze horas e resolvo verificar a caixa de correspondências. Entre muitas contas tem um envelope azul. Olho o remetente e está escrito Bailarina! O envelope é uma surpresa principalmente pelo seu conteúdo: uma aliança e uma cartinha de texto objetivo e inesperado.

Meu anjo,

Maravilhosos todos os momentos que passamos juntos. Na primeira noite de junho eu estava tão triste, tão desesperadamente melancólica, com uma mágoa maior do que pode caber em qualquer coração. E conheci felicidade num estalar de dedos. Eu sorri. Na última noite com você eu fui uma mulher completa em teu amor ensandecido e poderoso a ponto de me fazer sentir o que é paixão. Eu vivi. Mas eu não existo meu amor. Eu sou apenas uma mulher que você moldou em seus sonhos. Outra mulher da sua vida lembra-se? Uma obra prima esculpida de acordo com os seus desejos, não pelo mérito de nenhum deus. E você vai me perder agora. A terceira mulher da sua vida te acorda pra realidade. Se cuida.

Beijos, Bailarina.

Gelo e queimo ao mesmo tempo. Quase tenho uma síncope. A minha agonia é insuportável. Só pode ser uma brincadeira de péssimo gosto. Eu tinha estado dentro da bailarina, eu tinha certeza de que havia acontecido uma noite de amor que eu nunca experimentara igual. Eu tinha lambido com o maior tesão a tatuagem indefinida nas costas daquela mulher. Eu tinha apertado o corpo escultural dela com minhas mãos e junto ao meu corpo. Ainda podia sentir o seu perfume em mim. Havia demorado tanto para compreender que ela não era fruto da minha imaginação sequiosa por musas! Não podia ser verdade o que estava escrito na carta. Não fazia sentido. Vai ter imaginação fértil assim no inferno, refleti eu, antes mesmo da minha cabeça. E a aliança sem nenhum nome ou inscrição? Por que ela a teria enviado com a carta? Na minha mente a terceira gargalhada do barman ecoa retumbante, assim como acordes dissonantes feitos os de Hermeto tocados pelo pianista. Ligo para o número do celular da bailarina e a gravação da operadora fala que o número de telefone não existe. Entro no Fiat Palio e tento relembrar onde tínhamos ido no amanhecer da sexta feira. Rodamos muito. Nem eu nem o Palio conseguimos encontrar aquele prédio situado em algum lugar da zona norte. Resta ir alguma noite ao bar ver se encontro um velho e simpático barman carcomido pelo tempo, um excelente pianista latino fazendo mesuras com a cabeça, um garçom atendendo poucos clientes, ávido pelo seu descanso. E uma morena triste e deslumbrante com corpo de bailarina e longos cabelos pretos, sentada ao balcão frente a um copo de Black Label. Ela abrirá lindo sorriso quando me vir. Eu e o Palio sabemos qual é o bar e qual o endereço dele. Não tive coragem de ir até hoje, mas esta noite vou lá.

POST ESCRIPTUM
Bem agora, no momento em que o Fiat Palio está me levando ao bar, a minha louca e desvairada cabeça de poeta se esforçou e resolveu criar umas palavrinhas dirigidas à Bailarina. Chegando ao bar vou escrevê-las num guardanapo, colocar no envelope azul e entregar a ela. Ou não...

À Bailarina

Mulher dos sonhos transparentes,
lascivos e indecentes,
construídos na paixão.
Mulher, aceito a tua dança
formando aliança
com nossa ilusão.
Abraço a fome do teu corpo,
disfarço e bebo a tua dor.
Cansaço e mágoa de um morto,
faço-me assim o teu consolador.
Mulher, não se ama impunemente,
mesmo que a gente tente
não há como escapar.
Mulher, deixaste a tua lembrança
no beijo que ainda alcança
e torna-nos um par.
Apague essa realidade.
Negue ser de um deus cruel.
Faça em mim tua vontade.
Nasça a tua vida neste céu.


FIM

O HOMEM QUE IA MORRER DEPOIS DE AMANHÃ

Tarde da noite ele dirigiu-se à sua cama desanimadamente. Até os chinelos lastimaram os seus passos depressivos e agradeceram o repouso merecido. Apagou o último cigarro no cinzeiro do criado mudo e tossiu o pulmão, que saiu pela boca por segundos e voltou tão violentamente ao seu peito que ele se dobrou inteiro de dor. Olhou para a cama e lá estava a gordinha gostosa que ele ainda insistia em chamar de esposa, mesmo sabendo que ela dava para o irmão dele, para o vizinho, para o filho do vizinho, para o moleque que entregava pizzas, para o dono do bar da esquina e até para a manicure do salão de beleza da rua. Só porque há anos ele brochava. Nem a sua língua endurecia mais. Nem o seu dedo era duro. Toda noite a gordinha deitava na cama exalando o cheiro de vários homens e depois de um escandaloso bocejo dizia ao companheiro: - boa noite seu frouxo, até amanhã. Ele era realmente um bunda mole, tinha engordado mais de quarenta quilos nos últimos anos. A sua mente estava flácida. As suas pálpebras pesavam o dia inteiro. Estava falido, não conseguira ter filhos, tinha um subemprego e um patrão que o chamava todos os dias de burro e incompetente. Aliás, humilhação era uma constante em sua vida, pois perdera a coragem de reagir ou argumentar. Desaparecera a aptidão de concatenar a fala ou pensamentos. Crianças apontavam para ele nas ruas como se vissem uma aberração. Ouvia impropérios de qualquer pessoa logo baixava os olhos, colocava as mãos nos bolsos e saía capengando com a cara redonda mais inchada ainda, vermelha de vergonha. Não tinha vontade nem de se olhar no espelho, porque ficava enojado com sua péssima aparência

Deitou-se ao lado da rechonchuda sensual de barriga pra cima, fitando o vagaroso ventilador de teto que lançava os braços bravamente contra o calor insuportável. Subitamente um pensamento invadiu a sua mente. Sim, invadiu, não podia ser dele porque ele era um completo idiota que não pensava. O pensamento disse assim para ele: “- você vai morrer depois de amanhã”. Ficou assombrado com aquelas palavras, mas aos poucos relaxou. Iria morrer, que bom. Seria o fim de todo o seu desgosto, de toda a mágoa daquela vida infrutífera. O sofrimento não mais afligiria o seu corpo, a sua alma poderia ir descansar no limbo dos indigentes. Depois de amanhã ele iria morrer, que dádiva. Iria finalmente assumir a podridão do seu ser e descansar eternamente o esqueleto no frio da terra. Nem adubo viraria, não seria semente de nada, pois até os vermes rechaçariam a sua carne e a terra, se pudesse, vomitaria seus restos num espasmo nauseabundo. O pensamento filho da puta e ao mesmo tempo tranqüilizador que havia invadido o vazio do seu cérebro, continuou a fermentar palavras tripudiando do seu estupor: “- amanhã é o seu último dia de vida, depois de amanhã você vai morrer”, reafirmou o pensamento. Num último rasgo de lucidez mórbida, o homem, antes de fechar os olhos e numa atitude inédita em anos de existência insípida, decidiu aproveitar cada segundo do último dia de sua vida que começaria ao amanhecer. Fechou os olhos já se imaginando num confortável caixão depois de amanhã.

O HOMEM QUE IA MORRER DEPOIS DE AMANHÃ - Parte 2

Acordou super cedo com uma animação inusitada. Os braços do ventilador de teto pareciam girar mais rápido, como que comemorando a vitória sobre o calor. Ele era outro homem porque ontem soubera que iria morrer amanhã. Sendo outro homem, olhou para a rotunda desejável que dormia ao seu lado e ficou excitado. Impressionante que depois de tantos anos sem manifestação alguma nem para uma masturbação solitária, agora que sabia que ele ia morrer o seu pau se arvorava no direito de um derradeiro prazer como um condenado ao cadafalso.

Puxou fortemente a mulher de lado e beijou o pescoço dela com tanto ímpeto e prazer que o deixou roxo. A parceira de cama acordou surpreendida achando que ali estava outro homem, pois ele começou a beijar os seios dela e a lambê-la literalmente de cabo a rabo. Ela sentiu um membro enrijecido disposto a penetrá-la avidamente. A volumosa, sem entender nada, começou a gostar ainda mais da estória quando o homem, que não podia ser o impotente do marido, montou em cima dela e começou a comê-la com um desespero de presidiário que não fazia sexo há dezenas de anos. O tal a virou do avesso introduzindo o pênis tarado por trás dela com tanta voluptuosidade que quase rasgou as nádegas da mulher, que urrou de prazer gozando sem parar. Ele a virou de frente novamente e colocando o pau na boca dela mandou que chupasse gostoso, no que foi obedecido prontamente. O marido quase desconhecido liberou um orgasmo contido há tanto tempo que transbordou da boca da vadia para a cama, da cama para o chão e do chão para o teto do quarto. Então, saciado o seu tesão, ele enfiou a mão na cara da esposa devassa, que adorou e pediu mais. Ele a atendeu e enfiou a mão na cara dela sem parar, cobrindo a vagabunda de porradas. Ela nem teve tempo de gritar, de tanto que apanhou. O homem que ia morrer amanhã bateu até que a mulher ficasse inerte, com sua farta gordura espalhada pela cama. Com uma tesoura enorme e afiada cortou a língua da safada, que não mais o chamaria de brocha ou frouxo. Aliviado, o desproporcionado acendeu o primeiro cigarro do dia e não tossiu porque era um novo homem, era alguém que iria morrer amanhã.

Limpou a tesoura no lençol e a colocou no bolso junto com toda a grana que tinha. Fechou a porta do quarto, trancou a casa e foi até o bar da esquina que era de um dos caras que comia a sua "esposa". O magrelo desgraçado dono da espelunca só lhe dava café adormecido com leite sem nem esquentar e ainda preparava o pãozinho na chapa suja, com as mãos mais imundas ainda de coçar o saco, porque o lugar vivia às moscas. Tomava o café da manhã ali há tanto tempo que já se habituara a ser mal tratado. Na verdade ele era um verdadeiro saco de pancadas ambulante. O dono do bar acabara de abrir as portas e quando o viu foi logo falando: - bom dia trouxa vai um leitinho gelado aí? E abriu a bocarra numa gargalhada ridícula. Quando o desavisado abriu a boca de novo, o homem que ia morrer amanhã, sem pensar, porque sua cabeça era despovoada de idéias, puxou a língua do gargalhante e a cortou com a tesoura afiada. Nunca mais o palhaço falaria bom dia trouxa para ninguém. Levantou o magrelo pelo colarinho feito uma pluma, colocou-o em cima do balcão e foi deslizando o coitado em cima dos copos de vidro enquanto o sangue jorrava da boca dele. Tirou várias garrafas de leite da geladeira e despejou no ex-linguarudo perguntando: - vai mais um leitinho gelado aí? Jogou o dono do boteco totalmente estropiado sobre as mesas, destruindo tudo. Limpou a tesoura numa toalha e enquanto o cara chorava de dor, todo sangrento e arrebentado, desceu a porta do bar e retirou-se calmamente em direção ao ponto do ônibus, bem na hora em que chegou o coletivo que tomava pontualmente todos os dias às seis da manhã.

Entrou no ônibus e logo o cobrador que passava todas as viagens atormentando-o, riu sonoramente dizendo alto: - salve “rolha de poço”, vai entalar na catraca de novo? Só que agora o homem sabia que morreria amanhã e também que nunca mais iria entrar naquele ônibus e ouvir “salve baleia”, “salve balofo” ou “salve balão”. O negão ria despreocupadamente das suas próprias piadas durante o trajeto todo... “E aí jumbo, fala paquiderme” e depois continuava com “vai sambar aonde rei momo?”“Alguém quer comer um pudim de banha?”O homem levantou do banco e o cobrador gritou: “- sai da frente que o tonelada se mexeu!” “Já vai descer, jóquei de elefante?” perguntou com os dentões brancos contrastando com a pele de ébano. O homem de cabeça desprovida de raciocínio se aproximou da catraca. Inesperadamente catou as orelhas do cobrador apertando-as até sangrar e bateu brutalmente a cabeça do pobre três vezes na mesinha de dinheiro. Quando o apavorado gritou, cortou o órgão carnudo e móvel situado dentro da boca dele com a tesoura sem piedade e o arrastou por cima dos passageiros até atirá-lo pela porta de trás com o ônibus em movimento. Os passageiros, desesperados, passaram a gritar socorro e o motorista brecou o ônibus assustado. O homem que ia morrer amanhã colocou o dinheiro da passagem em cima da mesinha, passou apertado pela catraca e desceu imperturbado do veículo, não sem antes limpar o sangue da tesoura na gravata do aterrorizado condutor do coletivo.

O HOMEM QUE IA MORRER DEPOIS DE AMANHÃ - Parte 3

Foi andando por poucos quilômetros até o escritório de contabilidade em que trabalhava, localizado no centro da cidade. O escritório ficava em cima de uma loja de roupas e ele subiu os degraus para o segundo andar com vigor que não sentia há tempos. Ao entrar na empresa já estavam lá o boy e a velha secretária. Falou bom dia, mas nenhum dos dois o olhou ou se dignou a responder. Sentados cada um à frente de uma mesa, ignoraram como sempre a sua presença que não fazia a menor diferença, não tinha a menor importância. Imediatamente o patrão entrou na sala dizendo aos berros que para variar ele estava atrasado, que ia descontar do salário que ele nem merecia receber, que era um incompetente, um estúpido fracassado e que estava propenso a despedi-lo porque não poderia mais manter um empregado relapso, inapto e vagabundo. O homem que ia morrer amanhã, sem pensar, porque o seu cérebro era destituído de miolos, saiu detrás da sua mesa, trancou a porta do escritório, fechou as janelas e cerrou as cortinas. Foi até o patrão e inesperadamente agarrou a cabeça dele, puxou-o até o armário fechando a porta do mesmo violentamente várias vezes no crânio do chefe, que ao pedir por clemência teve a língua cortada com a tesoura sem dó. Esse não desancaria mais empregado nenhum, falou o ofendido. Depois, pegou as cabeças da velha secretária e do boy, batendo uma na outra com toda a força. Como eles não usavam as suas línguas para lhe responder bom dia, cortou-as facilmente também, pois ambos estavam petrificados de medo e dor. Jogou os três no banheiro encharcados de sangue e os abandonou lá com a porta trancada. Tomou um café, fumou um cigarro, limpou a tesoura na blusa da secretária que estava em cima da mesa e resolveu comprar uma camisa nova, pois a que usava estava amarrotada e manchada de sangue.

O incauto vendedor falou tirando sarro que iria procurar algum número de camisa para hipopótamos. Contava com um metro e noventa de altura, era esbelto e costumava falar mais do que a própria boca, incomodando todos os fregueses com suas perguntinhas inconvenientes tipo leva isso? leva aquilo? Foi buscar no estoque uma camisa de tamanho extra gg e voltou com alguns modelos nas mãos, dizendo para o homem que ia morrer amanhã experimentar as roupas no banheiro, porque nos provadores só cabia gente normal... O vendedor foi seguindo o comprador da camisa, continuando a fazer gozações: - se essas camisolas não servirem a gente junta três e costura ou então busca uma roupa de mastodonte! Entraram no banheiro, mas antes de vestir a nova camisa o avantajado agarrou o vendedor pelo pescoço, enfiou a cabeça dele numa privada e apertou a descarga, quase fazendo o pobre coitado descer para o esgoto. O trabalhador tentou gritar por ajuda, mas o homem que não pensava por ter um vácuo dentro da cachola pegou a tesoura, cortou o órgão gustativo do falastrão e o enfiou novamente dentro da privada gargalhando e batendo com a tampa do vaso sanitário no cara até cortar o pescoço do quase sufocado. Após o outro parar de lutar vestiu a camisa nova, limpou a tesoura na camisa velha e foi embora, deixando o vendedor afogando-se na privada, no sangue e no pranto.

Nesse instante tocou o celular do homem e ele nem bem tinha falado alô o gerente do banco já foi dizendo irritadíssimo que estava mandando as suas dívidas para protesto, porque o homem que ia morrer amanhã era um tremendo de um salafrário que não cumpria os seus compromissos há mais de ano. O homem respondeu que estava com o dinheiro para quitar todas as dívidas e convidou o gerente para um almoço no restaurante em frente ao banco, o que foi aceito imediatamente. Apesar disso o bancário ainda manifestou que o devedor não fazia mais do que a obrigação em pagar os valores e oferecer a ele um almoço para minimizar as dores de cabeça e prejuízos que ele tinha causado. Escutando aquelas agressões, o homem que ia morrer depois de amanhã segurou tão intensamente a tesoura em seu bolso que machucou as próprias mãos. O seu instinto de animal predador o fazia estar certo de que iria devorar o gerente do banco, se alimentando do rancor do estúpido brevemente.

No trajeto para o restaurante, ao passar em frente a um templo, o homem entrou para ouvir o sermão de um líder religioso, afinal ele ia morrer amanhã e quem sabe fosse bom morrer de bem com Deus. Só que o ministro da fé, com gestos teatrais e palavras veementes, apontou para o gigantesco cidadão que entrava e falou: “- vejam meus amigos, o tamanho desmedido desse pecador que chega nesta casa de oração para se arrepender ou então arderá no fogo do inferno para sempre. Está na cara que é um guloso, um verdadeiro glutão, um exagerado que desperdiça o sagrado alimento enquanto milhões de pessoas passam fome. Ele só tem uma salvação. Fazer uma oferta generosa a Deus e dar-lhe todo o seu dinheiro para poder entrar no paraíso abençoado. Doe o seu dinheiro a Deus, irmão pecador, liberte-se da gula e salve-se, gritou o pregador histericamente.” Parecendo sensibilizado e sem pensar, porque o seu cérebro era carente de imaginação, o homem aproximou-se do púlpito com duas notas de cem reais em cada mão e quando o clérigo abriu um enorme sorriso gritando aleluia, aleluia, teve o órgão da deglutição rasgado com a tesoura afiada, para nunca mais chamar ninguém de irmão ou pecador. O colossal levantou e jogou o púlpito sobre corpo do eclesiástico, então saiu do templo gritando aleluia e abençoando os atônitos e paralisados fiéis.

O HOMEM QUE IA MORRER DEPOIS DE AMANHÁ - Parte 4

E assim seguiu o homem que ia morrer amanhã, feito um serial killer podando com a tesoura enorme todas as línguas azaradas que cruzavam com sua raiva. Justiceiro do vocábulo, defensor das aurículas, cortou a língua do imprudente gerente do banco em pleno restaurante lotado, a de um político que estava em um comício prometendo resolver todos os problemas da cidade, a de um jornalista esportivo que criticava o seu coringão em um programa transmitido ao vivo pela televisão, a de um estafante animador de programa dominical de auditório, as de duas fofoqueiras que maldiziam a vida dos vizinhos, a de um advogado inescrupuloso que acabara de inocentar um estuprador, a de uma recepcionista que o atendeu grosseiramente em uma lanchonete, as de um casal que estava brigando e discutindo a relação em público, a de um professor que estava ralhando com seus alunos na porta de um cursinho, afirmando que reprovaria a todos, a de um cantor brega que desafinou bem na hora em que ele entrou em uma casa noturna na happy hour para tomar uns tragos. Claro que a notícia do ceifador de línguas havia se espalhado pela cidade, devido à profusão de sangue e mortes provocadas pelo homem em tão pouco tempo. Todas aquelas ações haviam acontecido do nascer do sol até o início noite. A polícia, um tanto quanto atônita, passou a perseguir as pistas do criminoso, que apesar de ser descrito como extremamente forte e corpulento, se movia lépido pelas ruas. Bailarino e compositor de um balé macabro, ele ia deixando um rastro de padecimentos e barbaridades por onde passava. E suas assinaturas eram, além das atrocidades, a aflição e a quietude que ia causando não só pelo temor, mas pelas línguas cortadas das suas vítimas que choravam suas mágoas sem palavras até a morte.

As emissoras de rádio e televisão cobriram e divulgaram a onda de assassinatos e línguas trinchadas quase que em tempo real, o que fez especialistas tentarem traçar o perfil psicológico do criminoso: segundo eles tratava-se de um psicopata da pior espécie. Desumano, insensível, um homem que se fizera pacato e subalterno, apresentara-se tímido e covarde a vida toda, mas que de repente tivera aflorado por algum motivo ainda desconhecido o seu lado negativo onde acumulara extremo ódio, provavelmente devido a anos de humilhações e frustrações. O que os analistas podiam dizer é que aquele homem parecia não ter nada a perder, não mostrava preocupação em se esconder, não temia a prisão ou a morte e era uma bomba permanentemente acionada para explosão ao menor estímulo. Tudo isso o tornava extremamente perigoso e acabava dificultando a sua localização. O que os intrigava mais do que a motivação dos crimes, eram as línguas ceifadas de todas as bocas. Tudo começara com a esposa, passara por pessoas comuns como o dono do bar, o cobrador do ônibus e o vendedor. Depois pelo patrão e os colegas de trabalho. Na seqüência, com a exceção do gerente do banco, nenhuma das outras pessoas atacadas havia tido contato anterior com o carrasco: religioso, político, advogado, cronista esportivo, animador de TV, professor, fofoqueiras, casal, garçonete, músico. Os analistas conjecturaram, sem saber que o homem era totalmente desocupado de discernimento, que alguma mensagem aquela mente doentia estava tentando passar. Talvez ele estivesse obcecado querendo calar a boca da sociedade e das suas instituições consideradas mais importantes. Eles não faziam idéia que o homem descobrira que ia morrer amanhã.

O HOMEM QUE IA MORRER DEPOIS DE AMANHÃ - Parte 5

O boato das conclusões dos peritos espalhou-se como uma praga de todas as maneiras: inicialmente propagado pela imprensa e depois disseminado pela internet, viajou pelos celulares, passeou boca a boca pelas que ainda tinham língua, praticamente provocando um toque de recolher em todas as falas. Receosa de ter o principal órgão articulador das palavras separado em dois por alguma palavra julgada indecente ou inadequada pelo homem que ia morrer amanhã, toda a população se autocensurou. Foi um voto de silêncio geral e absoluto. As transmissões de rádio foram cessando, porque nenhum locutor ou repórter ousava arriscar comentários. Na televisão a cobertura passou a ser feita só com imagens e letreiros. Ninguém mais se atreveu a emitir opinião sobre qualquer assunto, declamar uma poesia, cantar uma música, contar uma piada, gritar, falar um palavrão, rezar, dizer juras de amor, dar beijo de língua, filosofar ou exprimir a maior besteira de todos os tempos. A comunicação entre as pessoas passou a ser um risco. Todos meditavam cem vezes antes de proferir uma simples frase ou um corriqueiro cumprimento. Bebês não choravam, cães não latiam, gatos não miavam e os pássaros migraram para o norte para não soltarem os seus trinados por ali. O medo da tesoura assassina emudeceu totalmente a cidade e até os policiais só se falavam via rádio utilizando códigos próprios, para não ofender ou aumentar a ira do homem que ia morrer amanhã, que a essa altura estava sendo caçado por todos os cantos.

Alheio a essa fama de censor crítico do vernáculo, das conversas, interjeições, sentenças, exclamações, afirmações, questionamentos, ponderações, relatos, definições e verbalizações genéricas, o homem que ia morrer amanhã foi percorrendo o silêncio opressivo da cidade sem se importar com os seus possíveis algozes. Após cumprir a missão de fechar todas as malditas e malévolas bocas daquela metrópole, segundo os seus particulares critérios, estava perambulando no meio da noite por uma rua pouco movimentada, pois a maioria das pessoas ficara escondida dentro de suas residências, quando viu uma plaquinha na porta de uma casa humilde com os dizeres: “Mãe Piná conta o seu futuro”. Ele sorriu e tocou a campainha sem pensar, porque era uma mente privada de inteligência. Uma senhora com cara de cigana e lenço na cabeça o atendeu gentilmente, mandou que ele entrasse numa sala escura e se sentasse. A cigana, totalmente desligada do mundo, deu o preço da consulta e ele pagou adiantado, mesmo porque já sabia que ia morrer amanhã e só estava ali para confirmar.

A vidente se concentrou firmemente, jogou as suas cartas e disse ter certeza de que a vida do homem que ia morrer amanhã iria mudar da água para o vinho. Ela via uma grande sorte, um prêmio de loteria e perguntou se ele havia comprado um bilhete ou algo assim Ele lembrou na hora que, já que ia morrer, não havia conferido o jogo da mega sena onde fazia uma fezinha toda semana. Só faltava essa. Morrer rico sem usufruir da sua fortuna. Entretanto a cigana fechou o semblante e avisou-o que via também grandes dificuldades para ele receber esse prêmio, pois ela o assistia no futuro breve fugindo de muitas pessoas sem conseguir entender o motivo. Só sabia que ele estava numa grande enrascada, mas milionário. Sem pensar, porque era totalmente desmaterializado de razão, o homem que ia morrer amanhã pegou na mesa vários incensos em brasa e os apagou nas mãos e braços da cigana que julgou charlatã. Após ela gritar intimidada, cortou com a sanguinolenta tesoura a língua da vidente que nunca mais contaria as suas adivinhações para gente nenhuma. Para terminar, enfiou as lâminas da tesoura no meio da testa da mulher. Esta poderia ter tido muitas premonições acertadas ao longo da carreira mediúnica, mas não tinha previsto o perigo, nem desconfiado da proximidade do seu próprio fim.

Cansado de cortar as más línguas e tapar tantas bocas despudoradas, o homem apavorou-se subitamente porque um novo pensamento apoderou-se do seu cérebro, alastrando o pânico por todo o seu corpo que começou a tremer descontroladamente. Esse novo pensamento martelou nos seus ouvidos estas palavras que explodiram e ficaram ecoando em sua cabeça ausente de ondas cerebrais: - a vidente estava certa seu imbecil!

O HOMEM QUE IA MORRER DEPOIS DE AMANHÃ - Epílogo

Amedrontado e agora na dúvida se realmente ia morrer amanhã, o homem saiu correndo pelas ruas sem rumo. Transformado numa grande bola humana desgovernada e sem direção definida, ia abalroando e derrubando os poucos transeuntes que atravessavam o seu caminho. Seguia destroçando com a força do seu peso todos os objetos que encontrava pela frente, até que parou, sentou-se no banco de uma praça e num esforço cerebral hercúleo, argumentou com o pensamento novo que o pensamento anterior tinha lhe dado a certeza ontem de que ele iria morrer amanhã. Quase apoplético por essa desmesurada e difícil tentativa de pensar, uma capacidade que fora se atrofiando até desaparecer totalmente da sua cabeça, perguntou como é que uma coisa dessas poderia mudar assim sem mais nem menos?

O pensamento novo dominando totalmente a mente do homem, porque ela era um espaço circunscrito repleto de nada, disse que não tinha a ver com outros pensamentos, que aquele era um pensamento único, absoluto e independente, que o balofo e sua estupidez deveriam ter evitado sair fazendo besteiras, cortando as línguas das pessoas. Que direito tinha o monstruoso homem de censurar as falas dos outros, mesmo se fossem xingamentos, ofensas, mentiras, calúnias e difamações? Mas o pior é que eram verdades. Era de conhecimento geral, continuou inexorável e sem compaixão o pensamento novo, que ele era realmente um brocha, um monte de banhas, um inábil, um safado irresponsável, portanto a maioria das línguas tinha despejado sobre ele a realidade dos fatos que ele quisera sempre esconder e nunca tivera coragem de refutar. E muito menos de alterar. Além disso, o homem que ia morrer amanhã tinha cortado também todas as outras línguas que nem haviam se referido a ele diretamente e que foram rasgadas por mero capricho, por discordâncias de pensamento de alguém que nem pensar pensava! Se tanto, ele tinha um primitivo instinto. Uma manifestação inferior de impulsos que comandavam o seu comportamento sem padrão. O homem normalmente afastado de elucubrações começou a ter milhões de pensamentos zumbindo ao mesmo tempo, o que congestionou a sua cabeça. Foram tantos que ele saiu encarniçado dali, já que não podia cortar a língua desse pensamento que o estava transtornando.

Os pensamentos invasores e perversos o acompanharam em sua fuga, jogando em sua cara sem parar e sem censura a verdade de sua existência até aquele momento desprezível e que se tornara ainda mais execrável. Tentando raciocinar, numa última tentativa de recuperar o seu cérebro deletado, o homem que ia morrer amanhã chegou a achar que houvera feito um bem ao encerrar palavras de tantas línguas e bocas cheias de sentimentos vazios, armas trevosas da maldade, instrumentos da podridão interior dos seres mais rasteiros e sem dignidade para viverem numa sociedade humana e justa.

Mas finalmente vencido pelos argumentos de tantos pensamentos contrários, concordou com eles perguntando-se quem era ele afinal? Algum deus para definir o direito ao silêncio ou a palavra, vida ou morte e o que era digno ou podre, certo ou errado? Ele era um pária, um homem que não pensava. Um monte de banhas a sustentar uma cabeça inócua que havia surtado. Acreditando que era um homem que ia morrer amanhã, ele foi procurar no seu destino o encontro com a mulher de foice nas mãos.

Já era quase meia noite quando o homem que ia morrer amanhã descobriu uma funerária, entrou atabalhoado pela porta e passou a procurar algum enorme caixão onde pudesse acomodar todos os seus muitos quilos de parvalhice. O funcionário estava adormecido, pois não houvera clientes até aquele instante, o que facilitou para o despojado de pensamentos fuçar a casa toda. Mas, decepcionado, não localizou o que desejava. Perto de desistir, chegou ao quintal e encontrou lá um único ataúde adequado, abandonado no chão nos fundos do terreno, jogado em meio ao mato. Acomodou-se, trancando-se no escuro e abafado esquife na esperança de que a morte fosse buscá-lo amanhã, que era dali a pouco. Não era possível ele ter sido enganado. Ele tinha que morrer, ele tinha que bater as botas, passar desta para melhor, apagar, entregar a alma a Deus ou ao diabo, ir para o beleléu, dizer adeus ao mundo, ir para a cidade dos pés juntos, esticar as canelas, ir comer grama pela raiz, largar a casca, dar o couro às varas, tomar o chá da meia noite, desencarnar, empacotar, fechar os olhos, vestir o pijama de madeira, pifar, virar presunto, ir para o além, dar o último suspiro, chegar às últimas, estar pronto, descer a terra, expirar, encontrar o criador, virar adubo, virar comida de minhoca, ir a sete palmos...

O pensamento anterior que havia causado toda aquela revolução lhe prometendo o descanso eterno tinha sido claro e convincente, para ele muito mais do que o novo, deseducado, que colocara incertezas nesse acontecimento trazendo milhões de outros pensamentos perturbadores. O desgastado homem fechou os olhos no caixão e decidiu não permitir que qualquer pensamento voltasse a tomar o seu cérebro. Ficaria lá de braços cruzados, imóvel, cego, naquele inferno tenebroso e mudo respirando arfante, até que acabasse o ar ou chegasse o dia de amanhã trazendo a morte.

Assim agiu o homem que ia morrer amanhã, enquanto lá fora imperava o silêncio de uma cidade inteira acuada por não saber o que dizer. Todos permaneceram quietos, ouvindo apenas o uivo do vento na madrugada e aguardando o desfecho da história.

FIM