Acordei sobressaltado. A minha respiração era
ofegante e o coração estava disparado. Aspirei profundamente todo o ar que eu
pude, tentando equilibrar a pulsação e consegui me acalmar. Eu me encontrava numa
espécie de colchão de molas, deitado de costas. Percebi e acompanhei o lento
girar do ventilador do teto por alguns minutos, até que desci o foco pelas
paredes brancas do recinto, num enquadramento de lente fotográfica que
alternava o zoom pra perto ou pra longe, como se eu esfregasse os olhos e as
imagens se desembaralhassem paulatinamente. Ao meu lado direito havia um guarda
roupa de portas escancaradas, deixando nítido o seu interior totalmente vazio
que exalava odor de bolor. Do lado esquerdo uma janela fechada colaborava para
tornar o ambiente escuro, um breu pesado e silencioso. Tentei me movimentar,
mas o meu corpo não respondeu instantaneamente a ordem enviada pelo cérebro. Só
após grande esforço consegui levantar a mão direita para tocar o rosto e me
apavorei. Eu não tinha mãos, os meus braços mais pareciam ganchos e se mostravam
peludos e cascudos como os de um inseto. Não contava exatamente com um corpo e
sim com uma espécie de exoesqueleto revestido de uma crosta endurecida. Não era
possível, provavelmente eu estava em meio a um pesadelo onde eu seria o
personagem de um livro de Kafka. Senti um forte calor. Eu não suava, mas sentia
jorrar de mim uma gosma nauseabunda. Antes de passar do pavor para o pânico,
ouvi o ranger de uma porta que se abria. Subitamente um humano puxou de forma
violenta o lençol do catre onde eu estirara a minha tanta podridão, provocando
o espatifar da minha carcaça ao chão. Deu tempo apenas de perceber uma bota
suja e cruel vindo em minha direção de forma decidida. Eu me senti ser esmagado
com força descomunal, impiedosamente e fui me transformando numa pasta disforme
e grudenta, até que tudo escureceu.
Acordei sobressaltado. A minha mente se mostrava
entorpecida e confusa, o meu corpo parecia paralisado. Eu não tinha movimentos
além da cabeça e dos olhos esbugalhados que piscavam freneticamente, em
absoluto e involuntário descontrole. Quis gritar, mas como uma mordaça cobria a
minha boca, eu só grunhi tal qual um porco sendo abatido sem dó. Que situação
terrível ter o cérebro em pleno funcionamento e o corpo não responder as ordens.
Entrei em desespero. Estaria eu tetraplégico por conta de algum acidente, que
ainda por cima teria afetado a minha memória? Algumas lágrimas frias e ardidas
brotaram em meus olhos. Sem saber o que acontecia ou a minha localização,
resolvi estudar a situação. Afinal, as únicas coisas com as quais eu podia
contar naquele instante eram o raciocínio, a capacidade de observação e a
vontade de reagir. E foi assim que eu me descobri em cima de uma maca, vestido em
uma camisa de força, com as pernas amarradas e os pés algemados nas grades
laterais. Não fazia sentido, mas pelo menos eu já conseguira avançar no
possível entendimento do que estava se sucedendo. Mas o que eu fazia ali, preso
daquela forma como se fosse um louco, um Hannibal Lecter sanguinário de
periculosidade letal? Subitamente dois homens de aventais brancos entraram na
sala com semblantes inexpressivos. Um ligou uma parafernália esquisita, apertou
teclas e girou botões, enquanto o segundo colocava placas em minha cabeça e as
prendia nela. Aí o primeiro deu o sinal para o segundo e de repente, sem
anestesia ou qualquer aviso, comecei a tomar choques elétricos violentíssimos
que me estremeceram inteiro, fazendo os meus cabelos eriçarem e os meus olhos
vidrarem. Agora sim fiquei com a face igual a de um doido de pedra. Os homens
repetiram várias vezes a sessão de choques, então eu nem os reconhecia mais. Na
verdade eu já me acostumara e quase os apreciava, quando a minha mente foi se
apagando, se apagando, até que tudo escureceu.
Acordei sobressaltado. Eu me senti estranho, mas
estava bem aquecido e parecia protegido, ligado a um cordão umbilical que me
alimentava constantemente, apesar de que a dona daquele invólucro mantinha uma
dieta de comidas gordurosas ou cruas, repletas de bactérias e toxinas, e bebia
muito mais álcool do que água. Isso fora as drogas que ela consumia avidamente e
que penetravam o seu corpo de todas as formas, chegando-me instantaneamente
para comprometer todo o meu desenvolvimento. Quando dei por mim eu era um feto
de alguns meses, no interior de uma crápula que me levara a uma clínica de
abortos. Dizem que um feto não sente dor, mas falam isso porque não se lembram.
Além da terrível sensação física de desconforto causado pelos gases pútridos
que habitavam aquela barriga, eu era afetado pelos venenos que circulavam no
fluxo sangüíneo da pessoa que jamais eu chamaria de mãe. Tinha hora que me dava
uma fissura tamanha, que eu saia lambendo placenta e parede uterina ansiosamente,
numa tentativa infrutífera e insaciável de buscar sabores mais agradáveis, mas
era tudo amargo e ácido. O mau cheiro daquele espaço apertado se fazia
repulsivo. A situação me acometia de uma angústia atroz, porque eu conseguia
ouvir vozes conversando lá fora e também o som estridente de instrumentos
cortantes sendo preparados para o dilaceramento do meu pequenino corpo e o
desligamento total da minha alma. Eu nem tinha tido tempo de saber se viveria
depois para sempre em algum paraíso, ou viajaria para a eternidade de um
inferno pior do que aquele que eu conhecera neste pouco tempo de existência. O
filosofar foi interrompido bruscamente pelo início do procedimento do meu
assassinato e uma contagem decrescente de dez para zero. Lá pelo número sete o
meu cérebro em formação começou a desfalecer e se alegrou, porque pelo menos a
anestesia não me permitiria sofrer e assim eu fechei os meus olhos e nem
chorei, até que tudo escureceu.
Acordei sobressaltado. Eu senti muito medo, uma
paura daquelas de dar diarréia e mijaneira simultâneas, tremedeira e suor
exacerbado. Eu jazia em uma poça de sangue no chão sujo e gelado de um cubículo
sem luz, mas estava vivo, apesar de respirar com imensa dificuldade. Tinha
costelas quebradas, dentes partidos, hematomas por todo o corpo e os pulmões
comprometidos. Abri levemente os olhos intumescidos e roxos para divisar que eu
estava encarcerado num porão úmido, de paredes enegrecidas, bolorentas e caindo
aos pedaços. Como eu havia parado ali eu não lembrava, só sabia que eu havia
sido espancado por muita gente ruim, que gargalhava a cada gemido de dor que eu
dava. Eu implorava para que parassem o suplício, mas o ódio e a agressividade
deles só aumentavam. Levei chutes na cara, pauladas, socos fortíssimos. Fui
colocado nu e puxado pelos cabelos como um boneco de pano. Então eles me penduraram
por uma corrente que vinha desde o teto e fiquei abandonado assim, até que a
corrente se partiu e eu me esborrachei no cimento esvaindo-me no plasma que era
lambido por ratos enormes, que também mordiscavam as minhas pernas. Era só isso
que a minha memória alcançava. Não sei por quanto tempo fiquei assim, talvez um
dia ou três, até que os canalhas voltaram e me ergueram gargalhando novamente,
dando tapas em meu rosto e me jogando água fria para que eu permanecesse
acordado e lúcido. Levaram-me arrastado, algemado e com os pés amarrados para
fora da cela. Eu fui me batendo nas paredes do corredor apertado e nos degraus
de uma escadaria que nunca acabava, até que uma porta metálica se abriu e a luz
do sol praticamente cegou os meus olhos. Quando consegui enxergar algo
novamente eu estava de costas para um muro, em frente a um pelotão de
fuzilamento. Todo aquele temor que eu sentia de repente passou e eu sorri,
olhando para o céu em agradecimento. Eu só queria as balas perfurando o meu
corpo, deixando-o como uma grande peneira de garimpeiro. Eu não consegui
segurar a gargalhada. Desta vez era eu quem a dava, o que irritou sobremaneira
os meus algozes. Um deles gritou “fogo” para os outros, que engatilharam os
seus fuzis e atiraram. A saraivada de projéteis atingiu meu corpo como gotas de
água abençoada. Eu continuei gargalhando histericamente, enquanto a maldade se
descortinava vagarosamente defronte aos meus olhos, até que tudo escureceu.
Acordei sobressaltado. Mãos rudes e grosseiras de
quatro homens me seguravam e exploravam todo o meu corpo. Um gigantesco e
pesado ser estava sobre mim, enlaçando o meu pescoço e fazendo um movimento tão
rápido e violento por detrás que me rasgava inteiro. Descobri que estava sendo
estuprado por pessoas alucinadas e anormais. A dor era lancinante. O cara que
me violentava tinha um tamanho desproporcional em todos os sentidos. Pelos
grosseiros cobriam-no integralmente, o que fazia que se assemelhasse a um
primata, não só pela atitude, mas também pela aparência. Eu me sentia sangrar e
arder e o sofrimento só aumentava. Se eu tentasse reagir, o que era praticamente
impossível, a coisa ficava pior. O animalesco que me penetrava suava em bicas e
exalando o seu bafo fétido me lambia a nuca, me chamando de puta, vagabunda,
safada, afirmando que eu seria a “mulherzinha dele para sempre”. Eu já estava
rogando que o descerebrado chegasse logo ao ápice e despejasse no meu interior
todas as suas doenças, porque os outros que me seguravam tentavam me excitar
manipulando o meu membro, como se fosse viável ter qualquer sentimento ali que
não fosse aflição, desespero e nojo. Não obtendo sucesso, passaram em minha
face e lábios os enormes pênis enrijecidos e molhados de esperma e enfiaram-nos
em minha boca até a garganta, rasgando os cantos que sangraram tanto quanto o
ânus alargado pela broca colossal do ogro. Aí o monstrengo tremelicou,
relinchou feito um cavalo e soltou uma cascata de gozo que transbordou ao chão.
Era incrível, mas intimamente eu me senti aliviado, porque quem sabe assim
saciado aquela tortura acabasse. A esperança foi logo desmentida, porque um dos
que haviam enfiado os paus na minha boca, trocou de lugar com a besta e tudo
recomeçou. E assim foi por um tempo incalculável, com os aberrantes se
revezando dentro e fora de mim, naquela sanha cruel, mórbida e sádica. Felizmente,
até talvez por um ato de auto defesa final, o meu corpo repentinamente se
entregou e deixei de ter qualquer sensibilidade. Não importava mais a minha
extinta masculinidade profanada. A minha mente começou a agonizar
gradativamente, me livrando dos futuros traumas, moléstias e vergonhas, até que
tudo escureceu.
Acordei
sobressaltado. Olhei pros lados e pra cima e fiquei horrorizado porque eu havia
dormitado dentro de um caixão de defunto. Quase sufocando eu vi por frestas na
madeira decrépita e apodrecida, que o esquife se depositava em uma vala,
cercado de lama e pedras. Mesmo contido naquele espaço comprimido, eu gritei exasperado
como nunca gritara antes, batendo na tampa deteriorada que me lacrava. O
silêncio ensurdecia e o escuro assustava. Ainda existia ar naquele compartimento
exíguo. Consegui distinguir que o meu melhor terno, um Armani falsificado, me
vestia e que em meus pés haviam calçado sapatos nobres, pretos e lustrosos. Não
tinha a companhia de flores. Pelo menos quem cuidara do meu sepultamento
respeitara os meus sentimentos pregressos. Alérgico a perfumes de rosas ou
outras plantas, quando em vida eu espirrava sem parar na presença delas e eu
não sabia antes o que aconteceria quando morresse, fato que eu descobriria
ironicamente agora, ali no fundo daquela cova imunda e desrespeitosa do meu
sepulcro. Mas será que ninguém percebera o equívoco? Qual o médico desgraçado
que houvera assinado o meu atestado de óbito? Ninguém auscultara devidamente o
meu coração, verificado o meu pulso e as atividades intensas do meu cérebro?
Nem pressa havia para provocar o meu desenlace, uma vez que sendo paupérrimo
nada além de dívidas eu deixaria como herança. Soltei a voz poderosamente outra
vez, apesar do ar estar ficando mais rarefeito, para que me descobrissem vivo e
me tirassem imediatamente dali. Que me chamassem de Lázaro, o ressuscitado, ou
me considerassem um Zumbi da série The Walking Dead, mas que me salvassem. Isso
não ocorreu e eu ouvi as rezas e bênçãos de um padre, verdadeiro absurdo para
um ateu, o que aumentou a minha angústia, mas se precisasse implorar a Deus ou
fazer promessas pro Demo pra me safar do fenecimento que estavam provocando eu
concordaria. Entretanto, ninguém me ouvia na Terra, no Céu ou no Inferno.
Falando em terra as orações cessaram e o barro começou a ser derrubado sobre o
ataúde, tumulando todas as minhas esperanças. Uma lágrima sentida caiu do meu
olho direito, enquanto a respiração foi diminuindo, diminuindo, até que tudo
escureceu.
Acordei
sobressaltado. Porém, logo reconheci o meu quarto com suíte, a cama King Size
dotada de colchão d’água onde eu estendia a minha coluna de atleta, os
travesseiros de penas de gansos onde a minha criativa cabeça descansava e o
edredom volumoso e perfumado que tinha o privilégio de me aquecer todas as noites.
Então eu me acalmei, já pensando em levantar. Eu sempre despertava no pique
total, alegre, saltitante, com vontade de comer, produzir, transar, trabalhar,
me divertir, sair e explorar o mundo, levando a todas as pessoas amigas ou
desconhecidas a minha incomparável e contagiante energia. Devido ao silêncio na
casa e fora dela imaginei que era muito cedo, mas já passava das nove horas de
um sábado. Desci as escadas e liguei a TV da sala, mas descobri que não havia
eletricidade. Então fui direto à cozinha preparar o breakfast. Eu estava com
vontade de um café da manhã do estilo que a gente vê em filmes americanos.
Peguei três ovos, várias fatias de bacon e fritei tudo naquele tipo de
frigideira em que nada gruda. Em outra panela rasa eu preparei panquecas,
quando subitamente acabou o gás. Que dia esquisito começava, mas nada abalaria
a minha fome. Para acompanhar o lanche eu cortei e bati manualmente frutas,
leite e cereais diversos. Sentei para forrar o estômago, peguei o celular e
estranhei. Não havia sinal. Por isso ninguém havia me chamado no whatsapp ou
enviado um email. Apelei para o lap top que contava com a bateria carregada,
tentando uma rápida navegação pela internet, só que apareceu uma mensagem
dizendo que não havia conexão. Voltei ao quarto contrariado, preparado para o saudável
banho matinal, esquecido que sem luz a ducha estaria bem gelada, mas isso não
seria o problema. Chato foi bem na hora em que eu estava todo ensaboado a água
parar de jorrar. Não podia ser verdade, parecia gozação. Será que eu não pagara
as contas todas? Que nada, eu era milionário e os pagamentos ficavam em débito
automático... Tirei o sabão e me enxuguei com a toalha, coloquei o abrigo
esportivo e fui às ruas correr, para a devida manutenção do meu invejado e musculoso
corpo. Eu tinha orgulho de exibi-lo nas academias e baladas. Em um quilômetro
já percebi que carros não transitavam e nenhuma pessoa circulava. Realmente era
um dia singular. O bairro parecia abandonado, todo o comércio estava com as
portas cerradas. Fui trotando pelo meio do vazio da rua e passei por um desses
relógios urbanos. A mensagem me chamou a atenção porque dizia: “NÃO SAIA DE
CASA. CUIDADO COM O CORONAVÍRUS!” E um textinho curto alertava para uma
pandemia que havia acometido o mundo inteiro. Mais adiante, um cartaz afixado
num muro explicava mais detalhadamente que a tal doença havia dizimado populações.
Mas tudo isso enquanto eu dormia? Como eu não havia percebido nada? Eu teria
ficado cego e surdo por um período? Então as pessoas deviam estar trancadas em
seus lares, obedientes e preocupadas, esperando a tal virose passar. Corri
aceleradamente de volta pra casa pra falar com os vizinhos. Toquei as campainhas
de cinco ou seis residências, mas não havia ninguém. O pânico bateu de vez. Só
existia eu num mundo sem gente, água, eletricidade, gás, internet ou qualquer
forma de comunicação. Mas a essa altura tanto fazia a comunicação, se não
existia ninguém pra interagir ou pra quem me exibir. Mesmo rico, fatalmente os
meus mantimentos acabariam em breve, pois eu não era de fazer grandes compras e
estoques. Relaxei, entrei em casa, peguei a última caixa de Heinekens, cujas
latinhas nem geladas estavam, coloquei uma cadeira na calçada e fiquei tocando
violão, bebendo e olhando para o nada. Vez em quando eu parava e pensava que
poderia ter acontecido outras coisas péssimas ao invés disso, como por exemplo,
acordar sendo o Gregor Samsa ou internado como um louco tomando fortíssimos
choques elétricos. Já imaginou despertar e se descobrir um feto prestes a ser
abortado ou frente a um pelotão de fuzilamento? Talvez fosse pior ainda, ao
amanhecer, se perceber sendo enterrado vivo ou estuprado incessantemente por
vários mastodontes. O mundo era repleto de possibilidades horríveis e a
situação que esse tal de corona tinha provocado talvez houvesse superado tudo, pois
me faria morrer solitário e à míngua, num padecimento demorado, sinistro e
lúgubre, com toda a minha grana que não serviria pra nada, o corpo musculoso
que definharia até o esqueleto, o orgulho que se transformaria na humildade dos
miseráveis e a alegria por viver que nunca mais encontraria um sorriso para se
expressar. No início da madrugada, cansado, triste e abatido eu me deitei.
Pensei em orar, mas como não sabia, apenas mantive no coração enfraquecido um leve
sentimento de esperança de que amanhã seria melhor. Aos poucos fui adormecendo
e me desligando da consciência, até que tudo escureceu.
No
dia seguinte acordei sobressaltado...
FIM